Marut/Traven na Alemanha, 1916–1922

Alexandre J Rosa
16 min readMay 2, 2024

--

Tradução do texto “Introduction — to in the freest state in the world”, escrito por Mina C. e H. Arthur Klein.

Fonte: B. Traven. The Kidnapped Saint & Other Stories. Edited by Rosa Elena Lujan, Mina C. and H. Arthur Klein. Lawrence Hill Books, Brooklyn, New York, 1991, pp. 155- 167.

*******************

Em novembro de 1915, um desconhecido ator, depois de trabalhar durante anos em teatros provinciais alemães, chegou a Munique, na Baviera. O homem pequeno, esbelto e retraído, que parecia ter cerca de trinta anos, trazia consigo pouca bagagem. Ret Marut, como geralmente se chamava na época, não tinha muitas perspectivas de conseguir trabalho nos teatros que ainda funcionavam na capital bávara. As temporadas alemãs encontravam-se bastante restritas, pois a Primeira Guerra Mundial já estava em curso há mais de um ano.

No início de 1916, Marut instalara-se num modesto quarto de pensão, três andares acima do térreo, num prédio de apartamentos na Clemens Strasse, 84. Um amigo que o conheceu como ator em Berlim, em 1910, lembrou muito depois que quando Marut chegou a Munique, sua mala continha quase que somente papéis manuscritos. Contudo, não eram os papéis que ele representava desde que começou a atuar nos palcos alemães, por volta de 1908. Os manuscritos de Marut e seus livros favoritos (muitos em inglês) estavam espalhados pelas mesas e cadeiras de sua sala. Suas paredes estavam decoradas com desenhos astronômicos.

Os vizinhos de Marut o consideravam agradável, quieto e sério. Muitas vezes sua máquina de escrever martelava até altas horas da noite. Frequentemente era acompanhado ou visitado por uma Fraülein (jovem), de cerca de vinte anos e um pouco mais alta do que ele. O zelador da Clemens Strasse, 84, entendeu que eles “trabalhavam para um periódico ou algo parecido”.

Estas informações, bem como a maior parte daquilo que pôde ser reunido sobre Marut, em Munique, devemos a um extraordinário pesquisador literário, historiador e detetive, Dr. Rolf Recknagel, de Leipzig. Se não fosse o trabalho obstinado do Dr. Recknagel, sob grandes dificuldades, os mistérios sobre Marut, por mais profundos que sejam, seriam muito mais profundos ainda. O trabalho de Recknagel provou que este Ret Marut, ex-ator, aspirante a escritor, editor revolucionário e ativista enigmático, havia se metamorfoseado fantasticamente, na década seguinte, em B. Traven, no México, o não menos misterioso contador de grandes histórias, uma figura para a literatura mundial estimar e lembrar.

Em 1965 foi publicado o livro de Recknagel, B. Traven: Beitrdge zur Biografie (Contribuições para a Biografia), apresentando o mosaico de evidências que ele pacientemente reuniu para demonstrar a identidade Marut-Traven. Traven, então ainda morando na Cidade do México, negou, direta ou não, qualquer ligação com o antigo Ret Marut de Munique. Mas depois que Traven morreu em março de 1969, sua viúva, Rosa Elena Lujan, seguindo suas instruções, revelou que ele de fato já havia sido aquele Ret Marut.

A aparição de Marut/Traven como jornalista e escritor começa com seu jornal militante Der Ziegelbrenner, no qual ele e sua namorada trabalharam incessantemente durante os anos de guerra. Seu título significa “O queimador de tijolos” ou “ O oleiro”. Foi publicado em Munique a partir do outono de 1917 e continuou até os eventos catastróficos do início de maio de 1919. Depois, apareceu irregularmente a partir de diversos outros lugares até 1922.

Deve-se ainda perguntar como o Ziegelbrenner, considerando seu conteúdo, conseguiu superar a censura alemã durante a Primeira Guerra Mundial. Seu combate, desde o início, foi direcionado contra o establishment imperialista e capitalista na Alemanha e no mundo.

Um dos poucos amigos de Marut daquela época lembrou, anos depois, que, quando colocado à venda nas livrarias, o Ziegelbrenner “atacou como uma bomba a cidadela da imprensa, que se tornou domesticada e subserviente à censura do tempo de guerra”. Marut, continuou ele, “com uma ousadia até então considerada impossível, rompeu todas as limitações da censura. Ele se tornou o lobo democrático entre o rebanho de ovelhas intimidadas da imprensa do tempo de guerra, o corajoso porta-voz dos direitos humanos entre as fileiras tímidas de propagandistas de títulos de guerra.”

Marut escreveu a maior parte do que apareceu naquelas páginas compactadas e bem impressas. Sua única colaboradora foi Irene Mermet, a já citada Fraülein. Tal como Marut, ela “graduara-se” nos palcos do teatro provincial, onde atuou sob os nomes de Irene Alda e Aldor, além de militar no jornalismo crítico e político. Juntos preparavam os editoriais, comentários, resenhas e exortações que, quase desacompanhados de publicidade paga, tornaram o Ziegelbrenner um jornal excepcional à época e memorável até hoje.

No entanto, a vida pregressa de Marut estava envolta em mistério. Um observador atento daqueles tempos distantes em Munique sublinhou mais tarde que “ninguém sabia qual era o seu verdadeiro nome, nem mesmo a sua namorada [Mermet] foi informada”.

Também romancista

Além de seus numerosos artigos, Marut também escreveu e publicou o que chamou (nas colunas do Ziegelbrenners) de “romance mestre”, cujo título era An das Fraulein von S. (Para Miss von S.). É verdade que a autoria saiu sob o pseudônimo de Richard Maurhut, mas havia poucas dúvidas de que este era apenas outro nome para Marut.

O Ziegelbrenner saiu em apenas treze edições. Marut informou a seus assinantes, desde o início, que a revista seria publicada irregularmente, conforme as condições permitissem ou suas decisões determinassem. As três primeiras edições apareceram em intervalos de cerca de três meses. Depois veio um intervalo de oito meses, repleto de convulsões na vida política e social da Alemanha, especialmente na Baviera.

Com a data de 9 de novembro de 1918 (mas chegando aos assinantes regulares pelo correio uma ou duas semanas antes), apareceu uma edição histórica de 46 páginas. Sua capa trazia um título jubiloso e profético: Es dämmert der Tag (O dia está amanhecendo). Nessa data, o antigo Reino da Baviera tornou-se uma República, sob liderança socialista. Dois números depois, o principal editorial do Ziegelbrenner tinha o título triunfante: “Começa a Revolução Mundial”.

No entanto, a edição seguinte, datada de 10 de março de 1919, provou ser a sua última publicação antes do triunfo do terror contrarrevolucionário em Munique. As próprias lembranças de Marut de como esse terror entrou em sua vida aparecem nas páginas de No Estado Mais Livre do Mundo.

Após sua fuga extraordinária, Marut se transformou num homem fugitivo e caçado. O mandado da polícia bávara nº 4.236 foi emitido para sua prisão. Nas listas de “procurados” que circularam na Alemanha, o seu nome aparecia como “líder” durante o Conselho da República da Baviera, sendo o seu delito listado como “Membro do Ministério da Propaganda”. Os documentos listavam seu local de nascimento como São Francisco, em 25 de fevereiro de 1882, e informavam os nomes de seus pais como William e Helene Marut.

Se fosse apreendido, Marut enfrentaria uma condenação quase certa, seguida de uma longa prisão, ou mesmo uma sentença de morte. Qualquer pessoa menos teimosa e audaciosa teria abandonado o Ziegelbrenner. No entanto, ele conseguiu de alguma forma produzir ilegalmente mais cinco números e enviá-los por correio a partir de vários locais indeterminados, e isso durante um período de dois anos, entre dezembro de 1919 e dezembro de 1921. O local onde estes extraordinários números “fugitivos” foram impressos permanece incerto até agora.

Por que em Munique, Baviera?

Cerca de meio século antes do surgimento do Ziegelbrenner, a Baviera era um reino independente. Com a unificação da Alemanha Imperial, a Baviera tornou-se parte do Reich chefiado pelo Kaiser Hohenzollern, mas ainda manteve a sua antiga família governante, os Wittelsbach. Mesmo sob o Império, a Baviera, fortemente católica, obteve alguns direitos autônomos. Mantinha relações diplomáticas com o Vaticano e tinha exército, sistema educacional, impostos e tribunais próprios.

A população da Baviera, de cerca de sete milhões, representava menos de 11% do total do Reich do Kaiser. A Prússia, por outro lado, representava cerca de 60%. Além disso, a maioria dos bávaros não gostava muito dos seus vizinhos prussianos. Quando a Primeira Guerra Mundial começou, no final do verão de 1914, os três corpos de exército da Baviera marcharam para a luta, tal como os outros 20 corpos de exército do Reich. No início, o entusiasmo e a expectativa de uma vitória rápida eram generalizados. Mas à medida que a guerra se arrastava, o descontentamento espalhou-se mais rapidamente na Baviera do que na maioria das outras partes do Reich.

A Baviera como um todo era muito menos industrializada do que a Prússia e a Renânia. A sua população estava mais concentrada em pequenos comerciantes, artesãos, agricultores e camponeses. Mais de setenta por cento dos bávaros eram católicos. Isto foi refletido politicamente pela influência preponderante do Partido Central da Baviera (Católico). No entanto, a partir da década de 1890, as ideias socialistas avançaram e as reformas exigidas pelo Partido Socialista da Alemanha (SPD) ganharam o apoio de um número crescente de trabalhadores industriais urbanos, especialmente na área de Munique. À medida que a terrível guerra se arrastava, cobrando um preço cada vez maior em sangue, dinheiro e fome, o descontentamento e o desespero crescentes levaram a greves, manifestações e à erosão de antigas ilusões e lealdades. O monarca governante de Wittelsbach, o rei Ludwig III da Baviera, carecia de carisma e de energia.

Durante 1918, a influência dos Socialistas Independentes (USPD) aumentou na Baviera. Estes Socialistas apelavam ativamente à paz e opuseram-se ao apoio dado à guerra pelos líderes dos Socialistas de Maioria (SPD). À medida que o inverno de 1918 se aproximava, um grande número de bávaros não estava disposto a continuar como antes, embora a maioria dos líderes políticos ortodoxos não pudesse ou não quisesse perceber este fato.

Chegou uma quinta-feira, 7 de novembro, com tempo ameno e claro, bom para uma reunião antiguerra, ao ar livre, que havia sido convocada no Parque da Baviera, em Munique. Multidões de trabalhadores das fábricas locais estavam presentes, e entre eles estavam vários soldados, que desafiaram as ordens de permanecerem em seus quartéis.

Vários oradores dirigiram-se à multidão. Erhard Auer, o principal socialista da maioria, convidou os seus ouvintes para uma passeata pela paz, ao longo das ruas de Munique. Mas a estrela naquela tarde provou ser um intelectual pequeno e barbudo, Kurt Eisner, um Socialista Independente, que alguns anos antes havia sido editor do Vorwarts, jornal socialista oficial publicado em Berlim. Eisner havia iniciado um movimento Socialista Independente na Baviera após a eclosão da guerra. Eisner instou os soldados a assumirem o controle de seus quartéis, armarem-se e de lá trazerem consigo o resto das tropas — de modo a assumir o controle do governo, e do próprio destino da Baviera. A multidão seguiu Eisner.

Num depósito de munições próximo, eles recolheram armas e depois seguiram para o grande Quartel Maximiliano. Antes do anoitecer, os soldados armados já controlavam as guarnições de Munique. Bandeiras vermelhas tremulavam, substituindo a tradicional bandeira azul e branca do reino de Wittelsbach e a bandeira preta, branca e vermelha do Reich Hohenzollern.

Na maior cervejaria de Munique, Eisner conferenciou com o primeiro Conselho de Trabalhadores e Soldados e foi confirmado por eles como chefe de uma nova “República da Baviera”. Rapidamente Eisner reuniu um gabinete, incluindo três outros socialistas independentes, três socialistas de maioria e uma pessoa sem partido. Antes do final do dia seguinte, este novo governo controlava quase todos os postos-chave de Munique, incluindo o edifício do Ministério da Guerra. Ao proclamar a República da Baviera, Eisner designou como sua autoridade suprema o recém-criado Conselho de Trabalhadores, Soldados e Camponeses.

Enquanto isso, Ludwig III, último dos reis de Wittelsbach, fugiu. As suas tropas privadas juntaram-se aos revolucionários, e o seu famoso antigo palácio, conhecido como Residência de Munique, era visitado por centenas de cidadãos curiosos da nova “República”. Assim começou a “Revolução Alemã” de 1918 — não em Berlim, mas em Munique. Dois dias depois, em 9 de novembro, em meio a uma greve geral, o Chanceler do Reich, Príncipe Max de Baden, anunciou que o Kaiser Guilherme II havia abdicado. Naquele momento, a notícia não era literalmente verdade, mas tornou-se, por assim dizer, uma profecia autorrealizável.

Os líderes do Partido Socialista de Maioria (SPD), liderado por Friedrich Ebert, apareceram então na Chancelaria e informaram ao Príncipe Max que as tropas em Berlim estavam do seu lado. Eles instaram que, no interesse da lei e da ordem, os membros do seu partido deveriam agora receber os cargos mais elevados. O Príncipe Max consentiu, sem muita hesitação. Mais tarde, o associado de Ebert, Philipp Scheidemann, discursou para uma multidão reunida perto do edifício do Reichstag alemão, em Berlim. Por conta própria, aparentemente em um lapso de língua, ele declarou:

“Viva a República Alemã!”

A multidão gritou em aprovação. Ebert ficou furioso diante dessa ato. Ele esperava e, aparentemente, preferia tornar-se Chanceler do Reich (Império) existente, não de uma nova República. Mas obviamente a maioria dos alemães não estava disposta a voltar atrás.

Assim, quase por inadvertência, o Reich Hohenzollern terminou e a estrada pedregosa da história desviou-se em direção à República. Não muito tempo depois, tornar-se-ia amplamente conhecida como “a República de Weimar” e perdurou, no meio de dificuldades e dissensões arrepiantes, até que, pouco depois do início de 1933, Adolf Hitler a desmantelou e a converteu numa ditadura nazista.

Será que o Kaiser Guilherme II teria sido forçado a abdicar e a fugir depois de 9 de Novembro se o rei da Baviera não tivesse sido derrubado sem derramamento de sangue por Eisner alguns dias antes?

Talvez a reviravolta em Berlim tivesse sido adiada e seguido um rumo um pouco diferente. Em qualquer caso, é indiscutível o fato de que a revolta da Baviera foi o passo inicial da “Revolução da Alemanha”. E que cerca de seis meses mais tarde, novamente na capital da Baviera, Munique, um último e sombrio ato dessa Revolução, agora abortada, foi realizada, com Ret Marut atuando como membro ativo do elenco.

Aquele semestre agitado foi repleto de planos e mudanças, exigências e decisões, retórica e atos de violência. Alguns deles devem ser esboçados aqui para aprofundar a nossa compreensão do que Marut quis dizer com o seu amargo e memorável relatório de protesto: No Estado Mais Livre do Mundo.

Laços secretos com os generais

Pouco tempo após Ebert se tornar chefe do governo provisório em Berlim, ele e o general Groener, porta-voz do Estado-Maior do Exército, chegaram a um entendimento secreto. Os generais manter-se-iam afastados, não procurando derrubar o novo regime; no entanto, não tolerariam o “bolchevismo”, ou seja, nenhuma socialização da indústria ou da agricultura, e nenhum controle efetivo por parte da classe trabalhadora. Embora a forma de governo tivesse mudado, significava uma Alemanha basicamente inalterada

Este acordo foi clandestino. No entanto, as políticas do governo Ebert enfureceram cada vez mais os trabalhadores radicalizados de Berlim e de outros centros urbanos. As manifestações e greves faziam exigências radicais, incluindo o reconhecimento do poder dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados que tinham sido amplamente formados. No início de janeiro de 1919, Ebert e seu grupo estavam receosos e procuravam deliberadamente, pela força das armas, esmagar os dissidentes.

Para isso precisavam de alguém no topo que trabalhasse com os chefes do Exército na organização e direção de uma supressão final dos “vermelhos”. O especialista em assuntos militares da Maioria Socialista era Gustav Noske. Durante anos no Reichstag, ele apoiou orçamentos militares e trabalhou contra as exigências de pacifistas ou antimilitaristas dentro ou fora do seu partido.

No início de Janeiro, Ebert ofereceu apressadamente a Noske o posto de “defesa” do pressionado governo provisório. Não havia ilusões de nenhum dos lados. Noske aceitou imediatamente, com uma observação ao mesmo tempo consciente e cínica: “Por mim está tudo bem. Alguém tem que ser o sabujo. Eu não me esquivo dessa responsabilidade…”

Noske moveu-se rapidamente. Forças bem armadas retiradas tanto dos remanescentes do exército regular quanto de irregulares ou Freikorps recém-conquistados foram colocadas em ação. Eles esmagaram grupos radicais, especialmente os Espartaquistas, capturando ou matando os seus líderes e unidades de guarda. Em Berlim, o terror durou de 8 a 12 de Janeiro. Terminou com a eliminação dos principais responsáveis do novo Partido Comunista Alemão, formado apenas alguns dias antes, e com a destruição dos seus escritórios.

Em 15 de Janeiro, os seus dois líderes destacados, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, foram capturados e brutalmente assassinados por soldados contrarrevolucionários.

Em 19 de Janeiro, um movimento revolucionário tinha sido quase eliminado nos principais centros da maior parte da Alemanha. Essa foi, significativamente, a data marcada para uma eleição nacional de delegados para uma assembleia nacional, que em Fevereiro estava marcada para estabelecer um governo regular e estruturar para a nação uma nova constituição republicana.

Enquanto isso, na quase autônoma Baviera, o regime de Eisner ainda mancava, bem-intencionado, gentil, um tanto quixotesco e caótico — mas sem vínculos com o alto comando do Exército ou com os ultraconservadores. Duas eleições ocorreram na Baviera, com apenas uma semana de intervalo. A primeira, 12 de janeiro, escolheu uma nova legislatura estadual (Landtag). O dia seguinte, 19 de janeiro, fez parte das eleições gerais para a Assembleia Nacional.

O regime de Ebert em Berlim ordenou que, pela primeira vez na história alemã, tanto as mulheres como os homens tivessem o direito de votar — e que a idade de voto fosse reduzida para 20 anos, em vez dos anteriores 25. Ret Marut previu nos seus escritos anteriores a estas eleições resultariam em reveses para os radicais.

Em 12 de janeiro, os Socialistas Independentes de Eisner (USP), com apenas 80 mil votos, obtiveram apenas três cadeiras na nova legislatura. O Centro Católico, agora denominado Partido Popular da Baviera (BVP), conquistou 58 assentos — perdendo o seu antigo domínio, mas continuando a ser o partido mais forte. Os Socialistas de Maioria (SPD) conquistaram 52 assentos, a União Camponesa 16 e os Liberais Nacionais 5. É evidente que, assim que o novo Landtag da Baviera fosse convocado, poria fim ao governo Eisner.

As eleições de 19 de Janeiro em toda a Alemanha escolheram 421 delegados para a Assembleia Nacional. Destes, 39 por cento (163) eram Socialistas de Maioria (SPD), 5 por cento (22) eram Socialistas Independentes (USPD), e ambos os partidos socialistas juntos tinham apenas 44 por cento, bem abaixo de uma maioria. Juntos, os vários partidos do centro e da direita poderiam reivindicar a maioria.

Não foi por acaso que Ret Marut, em No Estado Mais Livre do Mundo, examina a catástrofe eleitoral a partir do sistema de votação, apontando-o como um dos principais responsáveis pelos reveses para as causas que apoiava. Há muito que ele alertava que a concessão precipitada do direito de voto às mulheres poderia significar que muitas delas votariam com os confessores, ou para aqueles candidatos em que seus pais insistissem, ou indicassem que deveriam votar.

No início de Fevereiro, a Assembleia Nacional reuniu-se em Weimar, isolada em segurança da capital radicalizada, Berlim. Em 11 de fevereiro, os seus delegados designaram Ebert como o primeiro presidente da nova República da Alemanha. Ele, por sua vez, escolheu como chanceler Philipp Scheidemann. E, para surpresa de ninguém, mas para indignação de alguns, o primeiro-ministro do Exército tornou-se Gustav Noske. A essa altura, Noske estava a caminho de se tornar talvez o político mais odiado pela extrema esquerda — individualistas de mentalidade anarquista como Marut, bem como comunistas e socialistas independentes. Na época em que Marut escreveu seu artigo, o nome Noske inspirou a fúria entre os radicais.

Assassinato em Munique

Em 21 de fevereiro, Kurt Eisner, ainda primeiro-ministro da Baviera, estava a caminho do Landtag pela primeira vez. Na verdade, ele estava prestes a anunciar a sua demissão, uma vez que as eleições bávaras não o tinham apoiado. Mas Eisner nunca chegou. Ele foi abatido por um estudante de 22 anos. Conde Arco-Valley, um aspirante reacionário que esperava assim demonstrar a sua aptidão para ser membro de um grupo antissemita e de estilo fascista que se autodenominava Sociedade Thule.

Este ato cruel de assassinato desencadeou ressentimentos, represálias e tentativas de vingança. Naquele mesmo dia, no Landtag, um apoiador de Eisner disparou contra o líder da maioria socialista, Erhard Auer, ferindo-o gravemente e matando um oficial do Ministério da Guerra da Baviera, que tentara salvar Auer. Um membro do Partido Católico (BVP) também foi morto na confusão.

A revolta irrompeu na Baviera. O clímax foi uma greve geral, a tomada de escritórios de jornais e a criação de um Conselho Central representando os Conselhos de Trabalhadores e Soldados, ativos em Munique e noutros locais. O Landtag da Baviera conseguiu em Março formar um novo governo com um socialista de maioria como primeiro-ministro: Johannes Hoffmann, um professor.

Contudo, o Conselho Central e os seus apoiantes rejeitaram o governo Hoffmann e, finalmente, em 4 de abril, ordenou que o próprio Landtag deixasse de se reunir ou legislar. Três dias depois, o Conselho Central proclamou a República dos Conselheiros (Rate-Republik) para a Baviera. Este novo regime rejeitou a cooperação com o que chamaram de vergonhoso e desprezível governo “Ebert-Scheidemann-Noske” em Berlim.

Foi nomeado um novo governo bávaro, composto por “representantes do povo”, nenhum dos quais tinha apoiado o gabinete Hoffmann. Socialistas independentes e anarquistas foram incluídos entre os representantes destas pessoas. Agora Hoffmann e o seu gabinete não ousavam permanecer em Munique. Refugiaram-se em Bamberg, um reduto católico conservador, e de lá apelaram urgentemente à ajuda do governo do Reich e de outros estados alemães.

Um grande número de agricultores e proprietários rurais da Baviera se opuseram à República dos Conselheiros. O mesmo aconteceu com os burgueses urbanos e os círculos católicos mais devotos. O regime do Conselho, no entanto, não assumiu o controle das indústrias, dos bancos ou de outros pontos econômicos-chave. Durante a noite de 12 para 13 de Abril, uma nova mudança trouxe os comunistas para um Comitê de Ação, que substituiu o antigo Conselho Central. Foi escolhido um grupo executivo de quatro homens, liderado por um comunista, Eugene Levine.

Por esta altura, a região controlada pela República dos Conselheiros estava a ser bloqueada pelos apoiantes do governo Hoffmann e do regime de Ebert, em Berlim. O Comitê de Ação emitiu ordens destinadas a desarmar a burguesia bávara, colocar trabalhadores em posições-chave na indústria e nacionalizar os bancos. Foram criadas comissões para controlar a economia, os transportes e as comunicações (especialmente a imprensa, que era um espinho na carne dos apoiantes da República dos Conselheiros).

Os líderes dos Socialistas Independentes rapidamente conseguiram reverter algumas das medidas apoiadas pelos comunistas no Comitê de Ação. Em seguida, os comunistas renunciaram ao Comitê. O seu chefe, o Socialista Independente Ernst Toller, um talentoso jovem dramaturgo e poeta, tentou, sem sucesso, negociar com o gabinete Hoffmann em Bamberg.

Em 30 de abril, Noske cercou Munique com forças militares e paramilitares estimadas em cerca de 60 mil soldados armados. No dia 1º de maio, como revela o relatório histórico de Marut, eles penetraram em setores importantes da cidade. Alguma resistência continuou até 3 de maio, mas no dia seguinte os últimos defensores da República do Conselho da Baviera foram esmagados nos arredores de Munique.

Uma lei marcial foi declarada desde o início da ação. Centenas de soldados, estudantes, trabalhadores e intelectuais radicais foram mortos ou espancados. Mais de 2.000 pessoas detidas foram condenadas a penas em penitenciárias e prisões. Entre os oficiais que dirigiram o esmagamento da República do Conselho da Baviera estavam alguns que, alguns anos mais tarde, se tornaram assessores proeminentes de Adolf Hitler no movimento nazista alemão. Um deles foi o general Franz Epp, que em breve seria o especialista nazista em “problemas coloniais”.

Depois que Hitler se tornou Chanceler, no final de janeiro de 1933, Epp foi elevado ao posto de deputado do Führer, ou Statthalter, da Baviera. Outro foi o capitão Ernst Rohm, mais tarde chefe das tropas de assalto nazistas, massacrado finalmente por ordem de Hitler no expurgo sangrento de junho de 1934.

Nem todos os mortos ou feridos no início de maio de 1919 eram membros ou mesmo apoiantes da República dos Conselheiros, ou do regime de Eisner que o precedeu. Mais de vinte pessoas foram mortas, por exemplo, no ponto de encontro de uma organização católica por invasores que erroneamente as consideraram espartaquistas. A onda reacionária que varreu a Baviera na sequência destes acontecimentos fez com que, mais do que qualquer outra outro estado alemão, a Baviera se tornasse o terreno mais favorável para o movimento nazista.

O relatório altamente individual de Marut, aqui publicado pela primeira vez em inglês, revela uma grande indignação frente a muitos destes acontecimentos.

--

--

No responses yet