As “cartas falsas” do Correio da Manhã — o centenário de uma fake news que abalou a Primeira República
O despertar da caserna e a surpresa de Epitácio Pessoa
As sucessões presidenciais sempre geraram crises ao longo de nossa história, algumas delas gravíssimas. Durante a Primeira República (1889–1930), as etapas de sucessão presencial, com algumas exceções, foram marcadas por tensões político-sociais agudas. A “política dos governadores”, instituída no quatriênio Campos Salles (1898–1902), sofreu seu primeiro baque na sucessão presidencial de 1910, que culminou com a ascensão do marechal Hermes da Fonseca à presidência, derrotando Ruy Barbosa, naquela que foi a primeira eleição pra valer de nossa República.
[Sobre a campanha sucessória de 1910, um vasto material pode ser consultado nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa, a partir desse link:
A derrocada final do regime, em 1930, não por acaso, ocorreu após uma conturbada sucessão presidencial. Entre as crises de 1910 e 1930, outra campanha sucessória, ainda mais turbulenta do que a de 1910, expôs o caráter frágil, porque fraudulento, daquele sistema. Foi naquele ano de 1922, que nos legou uma série de eventos importantes para nossa historiografia. Acontecimentos como a criação do Partido Comunista, a Semana de Arte Moderna, o surgimento do movimento tenentista e a sucessão presidencial “foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República.”[1]
[1] Marieta de Moraes Ferreira e Surama Conde Sá Pinto. “A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930”, do Livro O Brasil Republicano — O tempo do Liberalismo oligárquico. Organização de Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Delgado. Civilização Brasileira: 2018, p. 373.
No campo das lutas políticas, já no início de 1921 começaram as tratativas para a sucessão presidencial. Chefiava o executivo o senhor Epitácio Pessoa, que fora sacado de última hora como nome de consenso para presidir o país, após o falecimento de Rodrigues Alves, em janeiro de 1919. Recuemos um pouco nos acontecimentos. Dizem os historiadores que a sucessão presidencial de 1918 foi o pleito mais tranquilo que a Primeira República conheceu e que, ironicamente, não se consumou. Todas as tratativas foram feitas sem alardes e na máxima discrição. Nilo Peçanha sugeriu ao então presidente Venceslau Brás que apoiasse o nome de Rodrigues Alves para a próxima presidência: “Minas e São Paulo, café com leite (motejou-se), monopólio das maiorias, entretanto equilíbrio; e paz.”[2]
[2] Afonso Arinos. Rodrigues Alves: Apogeu e declínio do presidencialismo. Brasília. Edições do Senado Federal: 2001, p. 302.
A parte láctea do acordo ficou com o então ‘presidente’ de Minas, o senhor Delfim Moreira. De modo que, já no mês de março de 1917, estava certa a eleição de Rodrigues Alves para a sua segunda estadia na presidência da República — a primeira havia sido no período 1902–1906. O único entrevero daquela engenhosa orquestração veio do “Manifesto sobre a chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira”, redigido por Ruy Barbosa — um calhamaço mais de cem páginas. Reclamava o grande orador da República, mais uma vez frustrado em suas pretensões de galgar ao posto máximo da nação, de ter sido acertada a nomeação do próximo presidente por um ato clandestino do Chefe do Poder Executivo.
Nesta investida, Ruy Barbosa foi voz solitária naquele deserto onde tudo já havia se mancomunado. As eleições oficiais aconteceram, conforme o calendário daquela época, a 01 de março de 1918. Trocou-se o presidente como se trocava um chefe de polícia ou algum encarregado de repartição pública. Não havia chapa concorrente e as “eleições” foram apenas uma atividade protocolar. O problema era que, ao receber o bastão, o velho conselheiro do Império já dava sinais claros de que estava com a saúde comprometida. Como se não bastasse, a gripe espanhola andava fazendo estragos por aqui. Só no Rio de Janeiro, em outubro de 1918, a pandemia vitimou mais de 5.500 pessoas. Com a saúde debilitada, a espanhola prostrou de vez o presidente eleito.
No dia 15 de novembro, data oficial da posse naquele tempo, Rodrigues Alves já não conseguia mais deixar a cama. Assumiu o cargo, como vice-presidente em exercício, o senhor Delfim Moreira, que se mostrou mais fleumático e incompetente do que o haviam pintado seus críticos. Era um verdadeiro poste plantado pela oligarquia mineira. Quem governava a nação, ou melhor, quem levava tudo no banho-maria, era o ministro da Viação, o senhor Afrânio de Melo Franco, da oligarquia mineira, auxiliado pelos dois filhos mais velhos do presidente eleito. Jornais da época noticiavam, com acento irônico, a situação um tanto inédita na qual viviam uma “Regência Republicana”.
Em alguns jornais oposicionistas, como O Imparcial, surgiam violentas acusações sobre a situação lamentável em que o país se encontrava. E a “Regência Republicana” seguia empurrando com a barriga, tanto a situação do enfermo quanto os problemas urgentes que o governo tinha que resolver. Um artigo assinado por um jurista de enorme renome à época, o Dr. Evaristo de Moraes, acendeu uma luz que parecia bastante improvável:
Para nós, não é preciso que qualquer outra classe estimule a ação da classe militar, e, principalmente, a do Exército, na ocasião em que a República periga e o país começa a descrer das virtudes do regimen adotado a 15 de novembro de 1889. Logicamente, obedecendo a determinações históricas, o Exército, quando se compenetrar do descalabro que ameaça as instituições, tem, necessariamente, de acudir, para assegurar a estabilidade de sua obra — ela foi mais resultante do levantamento do Exército do que da atividade do partido republicano. A República vigente é filha da revolta insopitável do Exército. Ora, no momento em que ela se encontra no maior dos perigos, que consiste na sua completa desmoralização, perante o país e perante o mundo, não é desarrazoado lembrar as circunstâncias em que ela nasceu. Confiemos, portanto, na atitude do Exército, de cuja energia patriótica a nossa história nos dá sobejos exemplos, que vêm desde o dia 7 de abril de 1831 até 15 de novembro de 1889.[3]
[3] Evaristo de Moraes. “Esta”… República, o Exército e o momento atual. O Imparcial, 19 de novembro de 1918. [Link:
As comemorações de fim de ano deram uma acalmada na situação, mas já nos primeiros dias do novo ano alguns jornais, especialmente o Correio da Manhã e O Imparcial, chegaram a ser rudes dizendo que a família do presidente eleito não tinha o direito de esconder do povo a real situação do ancião:
Atire a Excelentíssima Família aos olhos do povo quantos punhados de areia quiser e não logrará esconder a verdade, evidentemente visível, claramente observável.[4]
[4]O Imparcial, 02 de janeiro de 1919. [Link:
O inevitável aconteceu na madrugada de 15 para 16 de janeiro de 1919. O presidente morreu, sem renunciar. Como tal desfecho já era mais do que esperado, nos dias seguintes ao passamento, sem que o cadáver tivesse ao menos esfriado, começaram a pulular uma infinidade de candidatos à presidência. De todos os possíveis pretendentes ao cargo, o nome de Ruy Barbosa foi o que mais alçou voo naquele momento. Os jornais O Imparcial e o Correio da Manhã clamavam pelo velho tribuno da República. Comitês de campanha foram montados e uma agenda de viagens e meetings se espalhou por praticamente todo o Brasil. Era a uma evocação da campanha civilista, que o ilustre senador baiano repetia, agora, aos setenta anos de idade.
A imprensa de oposição continuava bombardeando diariamente as tentativas frustradas de uma solução de consenso por parte das oligarquias paulista e mineira. Ao mesmo tempo, apresentaram a candidatura Ruy Barbosa como a “Candidatura Nacional”, uma unanimidade de norte a sul do país. Edmundo Bittencourt, pelo Correio da Manhã e Macedo Soares, pelo Imparcial, se transformaram nos dois maiores propagandistas de Ruy Barbosa. E foi justamente nesses dois periódicos que começaram os acenos indecorosos ao Exército.
No fundo, eles sabiam que a candidatura do “Águia de Haia” não era nem de longe cogitada pelas oligarquias mineira e paulista e foram tocar naquela tecla sensível da política nacional. Pularam os muros dos quartéis e começaram publicar entrevistas com generais, que não se furtavam em falar em nome da instituição. Um deles, o general Setembrino de Carvalho, disse a respeito da situação eleitoral do país:
Neste momento a ninguém cabe o direito de se mostrar indiferente à escolha do presidente da República. Não há só os problemas internos, mas também os da política exterior, exigindo do governo homem de capacidade, tacto e prestígio. Entre os candidatos apontados à próxima sucessão avultam os nomes dos drs. Ruy Barbosa e Borges de Medeiros. Pelas minhas antigas afinidades com o Partido Republicano do Rio Grande, desejaria ver o dr. Borges de Medeiros no governo da República. É esta a voz das minhas afeições pessoais. Mas o nome do dr. Ruy Barbosa está em foco, cercado de extraordinário prestígio nacional e internacional, e não sei por que os políticos o impugnam. […] Se os políticos insistirem na sua velha prática de conchavos, contradizendo-se, mudando de conceitos, será lícito contrapor ao seu processo convencional, já gasto, uma convenção verdadeiramente democrática, na qual a opinião nacional de manifeste e resista.[5]
[5] Correio da Manhã, 26 de janeiro de 1919. [Link:
Dois dias depois, outra entrevista, agora com o general Silva Faro, comandante da 5ª região militar. O milico se mostrou mais cautelo do que o general Setembrino, dizendo ser indiferente às questões de ordem política e sendo de opinião segundo a qual o Exército deveria manter-se alheio a tais assuntos. “Como garantidor da ordem pública”, disse o general —
o seu papel [do Exército] é apoiar o nome que a nação escolher para gerir os seus destinos, a não ser que esse nome, pelas suas más qualidades, force uma reação do brio patriótico ofendido. Essa opinião, entretanto, cumpre que lhe diga — é particular, não refletindo em absoluto a opinião do Exército, nem mesmo a da divisão sob o meu comando.
Sobre a candidatura Ruy Barbosa, o general Silva Faro não foi tão enfático quanto seu irmão de armas e deitou observações mais gerais, do tipo: “é um grande nome”; “sua candidatura representa um movimento nacional da opinião”. Num tom mais legalista, acrescentou:
se o Brasil deseja, de fato, colocá-lo no supremo posto diretor dos seus destinos, se, finalmente, o povo quer vê-lo na presidência da República, o dever do Exército é, mantendo-se alheio à efervescência política, respeitar a expressa manifestação da vontade popular. Fazem-nos uma grande injustiça, pensando que nos preocupamos com as questões políticas. Atualmente, o Exército vive unicamente para a prática e desemprenho das mais nobres e patrióticas funções. O Exército, repito, não quer saber de política. Quando nós, os militares, apelamos para o Congresso, o nosso apelo fica sempre sem resposta. E o resultado é o que vemos: O Exército desaparelhado, sem número suficiente de oficiais, sem material, sem armamento, sem coisa nenhuma. Deem aos nossos oficiais o que eles pedem, e teremos, em pouco tempo, um grande e admirável Exército. Entretanto, tudo nos é negado. Em vão, clamamos, pedimos. São inúteis os nossos apelos.[6]
[6] Correio da Manhã, 28 de janeiro de 1919. [Link:
Alguns jornais chamaram a atenção para a vileza das manobras realizadas pelos propagandistas da campanha Ruy Barbosa. O A. B. C. soltou alguns editoriais alertando para a insensatez de se querer colocar as Forças Armadas no imbróglio eleitoral, fazendo “ouvir o pensamento do Exército para fins de irrecusável exploração política”:
Não se se envolvem espontaneamente nos conflitos das ambições políticas as classes armadas. Elas foram solicitadas, seduzidas, à luta pelo delírio bem inconsciente dos admiradores do insigne senador baiano. Foram estes que penetraram nos quartéis e que soprando vaidades de certos oficiais, despertando velhas ambições, afagando-lhes os mais irrefletidos ódios, justificaram a intervenção da força em deliberações que republicanamente, que democraticamente não devem ultrapassar as esferas partidárias e os círculos eleitorais da nacionalidade. [7]
[7] A espada — a grande eleitora dos civilistas. A. B. C., 01 de fevereiro de 1919, p. 2. [Link:
Não era razoável querer enlaçar os militares para aquela campanha presidencial, uma vez que eram bem conservadas na memória as opiniões que Ruy Barbosa ventilava em relação às classes armadas. Tal recurso, ainda no artigo do A. B. C., “de uma subalternidade profundamente perigosa, dará resultados integralmente contraproducentes ao triunfo da candidatura do homem que considera os soldados autômatos armados, grosseirões, viciosos, sem ânimo intelectual, sem educação moral, sem mesmo cultura profissional”. Os editorias do A.B.C. foram de uma premonição impressionante. Despertadas as Forças Armadas de seu retiro — desmoralizadas após a presidência do general Hermes Fonseca (1910–1914) e escanteadas pelo retorno das grandes oligarquias — não deixariam mais de ocupar espaço no proscênio das lutas políticas.
Dizem alguns comentadores que as portas da República foram reabertas à interferência dos militares em consequência das campanhas presidenciais de Ruy Barbosa. A primeira, em 1909, a grande “campanha civilista”, atiçou os brios militares pela avalanche de menosprezos em que o Exército foi alvo. Nenhum presidente havia sido tão massacrado e ridicularizado quanto Hermes da Fonseca. Apelidado de “Dudu” pela imprensa satírica, o presidente virou alvo fixo dos caricaturistas e motivo para inúmeras cançonetas e marchinhas que fizeram enorme sucesso. A “Careca do Dudu” virou símbolo de azar e urucubaca e fez muito sucesso na adaptação de J. Carvalho de Bulhões — “Ai Philomena”.[8]
[8] A letra pode ser acompanhada a partir do link:
A canção pode ser ouvida a partir do Link:
Mesmo sendo eleito para uma vaga no senado pelo Rio Grande do Sul, após deixar a presidência da República, Hermes da Fonseca acabou por renunciar ao cargo e preferiu se refugiar em sua casa de veraneio em Petrópolis. Logo depois muda-se para a Europa, onde reside por cinco anos, até voltar ao Brasil e se transformar num dos pivôs no episódio das “cartas falsas”.
A campanha para preencher a vaga de Rodrigues Alves ganhou os quatro cantos do país. A “Candidatura Nacional” de Ruy Barbosa foi rechaçada ao querer se aproximar dos movimentos grevistas que explodiram no Rio de Janeiro no meio daquele entrevero eleitoral.[9]
[9] Ruy Barbosa, o Exército e o Proletariado. A. B. C., 08 de fevereiro de 1919, p. 7. [Link:
A Constituição de 1891 estipulava que, em caso de vacância do cargo de presidente, nos dois primeiros anos de mandato, deveriam ser convocadas novas eleições. Os leaders das bancadas estaduais decidiram por uma nova Convenção, de onde sairiam as indicações dos nomes a concorrerem nas eleições, marcadas para o mês de abril. Mas todos sabiam que o nome escolhido com maior número de votos oriundos das bancadas mineira e paulista fatalmente seria o presidente eleito.
Uma semana antes da Convenção surgiu o nome de consenso das grandes oligarquias: o senador paraibano Epitácio Pessoa, que se encontrava na Europa chefiando a delegação brasileira na Conferência de Paz, em Versalhes. Apresentado pelo PRM (Partido Republicano Mineiro) e com o aval dos paulistas, foi a “sugestão” dos gaúchos para resolver o impasse. A escolha surpreendeu quase toda a imprensa e não menos o próprio Epitácio.
Edgard Carone comenta que “a indicação do representante de um estado secundário mostra a desorientação das hostes políticas e a falta de nomes representativos no sistema dominante. A velha geração — Campos Sales, Rodrigues Alves, Francisco Sales, João Pinheiro -já tinha desaparecido e a nova — Artur Bernardes, Washington Luiz, Altino Arantes, Antônio Carlos — apenas começava a se firmar”.[10]
[10] Edgard Carone. A República Velha II — evolução política. Rio de Janeiro. DIFEL: 1977, p. 332.
No dia 26 de fevereiro de 1919, os principais jornais do Brasil noticiavam a votação esmagadora de Epitácio Pessoa, como candidato da situação. O Correio da Manhã e O Imparcial, que tanto investiram na candidatura Ruy Barbosa, não pouparam críticas àquele arranjo mais uma vez forjado nas entranhas da negociata oligárquica:
A Convenção facciosa que ontem se reuniu no edifício do Senado homologou, como era de se esperar, o conchavo urdido quinta-feira última. Cento e trinta e nove votos contra quarenta e dois adotaram a candidatura do sr. Epitácio Pessoa, desfraldada dos aposentos do ministério do Interior, como bandeira de combate à candidatura já indicada pela nação. Este episódio da nossa história republicana deve ficar assinalado a letras de fogo.[11]
[11] Correio da Manhã, 26 de fevereiro de 1919. [Link:
As eleições de 13 de abril foram apenas aquele costumeiro protocolo. Por uma dessas peculiaridades de nossa República, o presidente se encontrava fora do país ao ser eleito. E lá permaneceu por mais alguns meses, esbanjando sua diplomacia, conhecendo os chefes das grandes nações europeias, além de uma estadia nos Estados Unidos antes de retornar ao Brasil, o que se deu somente no final do mês de julho. O homem parecia não ter pressa para assumir definitivamente o posto de mandatário da nação.
Fogo no pavio: ministros civis nas pastas militares e outra sucessão
A primeira rusga do novo presidente teve como causa as Forças Armadas: a nomeação de dois ministros civis para as pastas militares. O deputado da bancada mineira, Pandiá Calógeras, assumiu o ministério da Guerra; e o grande articulador da indicação de Epitácio à Convenção, o também mineiro Raul Soares, ficou com a pasta da Marinha. A nomeação de civis para os ministérios militares causou enorme rebuliço na caserna. Era a primeira vez que acontecia algo semelhante na República — e que só viria acontecer novamente no governo de Fernando Henrique Cardoso. Em suas memórias, Epitácio relembra esse momento:
Divulgada a resolução em que eu estava de nomear civis para as pastas militares, logo a intriga começou a imputá-la a prevenções que eu trazia contra as classes armadas, e, com grande e para mim dolorosa surpresa, fui informado de que no seio destas, principalmente da Marinha, se pronunciava forte agitação subversiva contraria aquela escolha. Era um triste sintoma. Contra o direito que ao Presidente assegura a Constituição de escolher com inteira liberdade os seus ministros, conspiravam, em conciliábulos de que a polícia me trazia ao corrente, oficiais esquecidos dos seus deveres de obediência, imbuídos do espírito de casta, impelidos por filauciosas ambições. Na véspera da minha posse, às onze e meia da noite, em minha residência, um dos mais prestigiosos generais da Armada me aconselhava a recuar daquele proposito, para não expor o país às vicissitudes de um movimento armado.[12]
[12] Epitácio Pessoa. Pela verdade. Rio de Janeiro. Livraria Francisco Alves: 1925, p. 102.
O ministro Calógeras, ao contrário de Raul Soares, não era um alienígena entre os militares e sua nomeação foi bem recebida por certa parcela das forças. Muito próximo aos militares conhecidos como jovens turcos, Calógeras escrevia para a revista “A Defesa Nacional” e era entusiasta da renovação do Exército. Foram de iniciativa do ministro civil as grandes aquisições de material bélico, a criação da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e das escolas de Estado-Maior, o acerto a Missão Francesa, vinda para o Brasil com o objetivo de modernizar as tropas, donde resultou o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) e o Regulamento Interno de Serviços Gerais (RISG). Alguns entusiastas chegaram a pintar Calógeras “como um dos melhores ministros que o serviram ao Exército brasileiro. Renovou as instalações, mandando construir uma rede de quartéis modernos, adquiriu copioso material, incrementou as indústrias de guerra…[13]
[13] Teodorico Lopes e Gentil Torres. Ministros da guerra do Brasil. Rio de Janeiro. Borsoi: 1950, p. 184.
Mas, no seio das forças armadas, a nomeação dos civis ficou mesmo como um travo amargo na garganta. Raul Soares deixou a pasta da Marinha em outubro de 1920 para assumir uma vaga no Senado, seu habitat natural. Em seu lugar assumiu outro civil, Joaquim Ferreira Chaves, e depois outro, Veiga Miranda, prova de que o presidente não arredaria o pé em relação a nomeações civis para o comando das forças militares. O governo de Epitácio vinha exercendo uma política de rigorosa economia (à Campos Salles, diziam) e em nome de tal divisa, o presidente negou seu apoio a um projeto de lei apresentado na Câmara para o aumento dos vencimentos de todos os oficiais e praças de terra e mar. Em setembro daquele ano enviou uma mensagem ao Congresso demonstrando o estado de colapso das finanças do país, diante da qual não havia espaço para nenhum tipo de despesa pública desnecessária.
Mal havia se acostumado com a presidência, o senhor Epitácio Pessoa se viu surpreso com a “antecipação” dos preparativos para a sucessão, já no início de 1921. E foi aí que o negócio começou a degringolar de vez. As oligarquias mineira e paulista, em especial o baronato do café, tinham pressa na articulação do um novo nome que continuasse defendendo seus interesses. As oligarquias intermediárias — Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e especialmente o Rio Grande do Sul — já tinham dado a entender que o modelo econômico orientado quase que exclusivamente na exportação de produtos primários, sobretudo o café, não podia mais vigorar como nas décadas anteriores. A desvalorização do câmbio, a compra de parte da produção cafeeira pelo governo e a negligência em atender outros setores da economia, sobretudo aqueles voltados para o consumo interno, iam gerando insatisfação, tanto entre os setores produtivos, quanto na massa de consumidores, que vinha aumentou significativamente.
O costume das sucessões presidenciais mandava que o presidente em exercício se empenhasse na escolha de seu sucessor. Mas tal não se deu com Epitácio, que lavou as mãos, entregando a política a si mesma[14].
[14] Pedro Calmon. História do Brasil. São Paulo. São Paulo Editora S/A: 1956, p. 310.
Tratou de resolver a pendência o senador Raul Soares, já em abril daquele ano. O nome a ser levado à presidência seria, em princípio, o de Artur Bernardes, ‘presidente’ de Minas Gerais. Entendeu o Partido Republicano Paulista que o nome do mineiro era bom. Faltaria acertarem a indicação do vice. Quando tudo parecia estar encaminhado, chega um telegrama do Rio Grande do Sul, com a manifestação de desagrado do sr. Borges de Medeiros, ‘presidente’ daquele estado e ‘fiador’ da República. Foi um prato cheio para os jornais que já haviam cerrado fileiras contra a candidatura do político mineiro, em especial o Correio da Manhã.
Estamos seguramente informados de que o Rio Grande do Sul vetou a candidatura do sr. Artur Bernardes. Chamada a pronunciar-se sobre o “Messias de Viçosa”, a situação sul-riograndense, nada conhecendo dos atributos pessoais e dos serviços efetivos do homem, quis, ao menos, conhecer-lhe algumas das ideias inéditas, pelas quais ele justificasse a escalada ao Catete. […] O sr. Borges de Medeiros remeteu aos senadores Vespúcio de Abreu e Soares dos Santos [ambos da bancada riograndense] longo telegrama, em que se ‘manifestou sobre o programa do P. R. M., que seria o do sr. Artur Bernardes, caso chegasse à presidência da República. A convicção geral no meio político é que, com a atitude do sr. Borges de Medeiros, fracassou a tentativa de levar à presidência da República o atual presidente de Minas. Soubemos também que o sr. Seabra telegrafara, há dias, ao sr. Borges de Medeiros, assegurando-lhe que o seu Estado acompanharia o Rio Grande do Sul no caso da sucessão presidencial.[15]
[15] O Primeiro estorvo. Correio da manhã, 10 de maio de 1921, p. 2. [Link:
O impasse havia sido criado. Sem apoio do Rio Grande do Sul, a costura para um nome de consenso para a substituição de Epitácio Pessoa se complicaria. A indicação para a vice-presidência de nomes ligados às oligarquias menores era uma forma de neutralizar dissidências e cooptar segmentos importantes da política regional. O Rio de Janeiro, até onde se sabia, não colocaria empecilhos à indicação de Bernardes — o chefe da oligarquia fluminense, o sr. Nilo Peçanha, antes de ter embarcado para a Europa, no ano anterior, havia firmado seu apoio às intensões dos paulistas e mineiros. Além da Bahia, com J. J. Seabra, Pernambuco tinha também o seu candidato à vice-presidência da República, com o sr. José Bezerra, ‘presidente’ daquele estado. Dizem ter sido o próprio Artur Bernardes, secundado por Raul Soares, quem deu a solução final para o impasse da vice-presidência — nem Bahia, nem Pernambuco; a escolha para compor a chapa recaiu sobre o ‘presidente’ do Maranhão, o sr. Urbano dos Santos, que já havia sido vice-presidente no quatriênio Venceslau Brás (1914–1918).
Apesar da negativa do chefe rio-grandense, a política do café-com-leite havia definido mais uma fórmula para apresentar na Convenção, a chapa Artur Bernardes-Urbano dos Santos. A prepotência das oligarquias mineira e paulista mais uma vez causou descontentamento nas demais forças políticas do país. Mas ao contrário das eleições anteriores, a sociedade brasileira, especialmente nos centros urbanos, já contava com uma massa crítica substancial para, pelo menos, engrossar o caldo dos descontentes.
Na década de 1910, a classe operária reunida em torno dos movimentos anarcosindicais havia protagonizado importantes movimentos grevistas e acentuado a crítica em relação a situação do processo político no país. A bandeira da moralização política e a denúncia do caráter fraudulento dos processos eleitorais chegou até as classes populares. Já na década de 1920, outros segmentos começaram a ingressar na arena política, sobretudo as classes médias urbanas e a jovem oficialidade das Forças Armadas. Faltava apenas uma forma de canalizar o incipiente movimento popular, “pois tanto os operários — e os setores operários de maneira geral — quanto as camadas médias urbanas não dispunham, na realidade, de espaços institucionais onde pudessem atuar e apresentar suas demandas sociais e políticas.[16]
[16] Anita Leocádia Prestes. Os militares e a Reação Republicana. Petrópolis. Vozes: 1993, p. 24.
Essa enorme demanda reprimida seria abocanhada pelo movimento das oligarquias dissidentes, que ficou conhecido como Reação Republicana.
A volta do “Dudu”… e dos milicos
No início de novembro de 1920 desembarcou no Rio de Janeiro o marechal Hermes da Fonseca, que havia passado os últimos cinco anos na Europa. “No seu desembarque, o Ministério, os chefes do Estado-Maior do Exército e da Armada, comissões do congresso, Conselho Municipal, Supremo Tribunal Federal, Clube de Engenharia, grande número de oficiais o esperam e lhe oferecem um banquete”.[17]
[17] Edgard Carone. A República velha II — evolução política. Rio de Janeiro. DIFEL: 1977, p. 344.
O descontentamento que havia em relação a atuação de Epitácio Pessoa, um pouco atenuada com a gestão do ministro Calógeras, voltou a crescer, principalmente pela questão das remunerações e de problemas gerados pela Missão Francesa. O Exército tinha muita admiração pelo ensino tático alemão, fruto dos sucessivos estágios feitos por oficiais brasileiros junto às forças daquele país. Após a Primeira Guerra, no entanto, criou-se um clima antigermanista nos países que aderiram à guerra junto aos aliados, além da própria admiração que a França despertou pela sua participação no conflito. A vinda dos franceses para ‘modernizar’ o Exército brasileiro “faz com que muitos militares entrem em choque com os oficiais estrangeiros. Bertoldo Klinger é afastado, recebendo o cargo de adido brasileiro em Lima. Também são afastados da instrução da Escola Militar o capitão Pantaleão Pessoa e o tenente Cordeiro de Farias”.[18]
[18] Idem, p. 354.
O ponto alto dessa nova crise entre militares e governo se deu com o pedido de demissão do marechal Bento Ribeiro, em abril de 1921, que chefiava o Estado-Maior do Exército, fato que não deixou de ser explorado pelos jornais oposicionistas, em especial pelo Correio da Manhã. Desde a chamada “Questão Militar”, cujos desdobramentos foram determinantes para a entrada das forças armadas na campanha republicana, que pouco tempo depois colocaria fim na Monarquia, os militares, em especial o Exército, passaram a aturar intensamente, porém de forma dúbia, na vida política do país. [20]
[19] A “Questão Militar” foi abordada em dois trabalhos muito importantes. O livro de José Maria Bello, História da República — primeiro período 1889–1902. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1940; e o capítulo “A Questão Militar”, do livro Os militares e a República, de Celso Castro. Rio de Janeiro. Zahar: 1995, pp. 85–105.
O historiador Edgard Carone escreveu sobre a antinomia entre o “Exército hierárquico” e o “Exército político”, que nasce com a República. Até 1922, com o surgimento do movimento dos tenentes, diz o historiador, “as relações entre o Exército e a política só se fazem através da representatividade da alta oficialidade: um Duque de Caxias, no Império; e na República, um marechal Deodoro da Fonseca, marechal Floriano Peixoto ou marechal Hermes da Fonseca, além de dezenas de coronéis, majores e generais que ocupam executivos e legislativos dos Estados.[20]
[20] Edgard Carone, Ob. cit.,p. 381–2.
Tal dubiedade significa que, de um lado, os pilares básicos da corporação militar (hierarquia e disciplina) devem entrar em contradição, ou pelo menos serem relativizados, quando alguns quadros daquela força, principalmente a alta oficialidade, passam a atuar diretamente na arena política, isso por que o mantra organizacional que orienta toda a vida na caserna — um manda e o outro obedece — não é compatível com as idas e vindas, as alianças, conchavos e reviravoltas típicas da esfera política.
Por outro lado, as Forças Armadas, como instituição, já gozavam de uma autonomia singular na estrutura organizacional do aparelho estatal brasileiro, passando muitas vezes a exercer a função de partido político nacional. Esse fato, durante a Primeira República, não era de se desprezar, uma vez que inexistiam partidos políticos nacionais. O Exército era o “único grupo nacional organizado, com uma elevada expectativa sobre seu próprio papel enquanto ‘estrato protetor da República’, e contando com a possibilidade do recurso à violência”.[21]
[21] Maria Cecília Spina Forjaz. Tenentismo e política. Rio de Janeiro. Paz e Terra: 1977, p. 35.
As facções oligárquicas que governavam o país não eram alheias à possibilidade de se aproximar das Forças Armadas, sobretudo nos momentos de crise — da Proclamação da República ao governo de Floriano, depois com a presidência de Hermes da Fonseca e de 1922 em diante até o ato decisivo em 1930. Para as ‘oligarquias menores’, tanto o Exército quanto a Marinha eram sempre vistos como possíveis aliados no enfrentamento contra o poderio quase absoluto das oligarquias paulista e mineira. Mas isso não quer dizer que as Forças Armadas serviram como um joguete político nas mãos das oligarquias, a coisa era mais complexa. Como ensina a historiadora Anita Prestes:
O Exército — e, em certa medida, a Marinha –, nas condições brasileiras, em que a política havia se tornado monopólio das oligarquias, desenvolvera, por uma série de razões histórias que remontam à Guerra do Paraguai, a tradição não só de refletir em seu seio os conflitos presentes na sociedade como também de agir sobre os mesmos, desempenhando, desta forma, um papel de relevo no desenrolar dos acontecimentos políticos do país. A corporação militar tornara-se uma força política, com interesses próprios — que não eram apenas seus objetivos precipuamente militares — não podendo, portanto, deixar de ser considerada pelas demais forças políticas: mais concretamente, pelos grupos oligárquicos que governavam a Primeira República. Os políticos buscavam alianças com os militares não só, nem principalmente, porque esses dispunham de armas, como também por terem um determinado peso político na vida nacional. Na medida em que as forças armadas se transformaram numa força política que dispunha de certa autonomia, seus chefes se achavam no direito de buscar alianças com aqueles agrupamentos políticos que mais lhes pareciam corresponder aos objetivos que perseguiam.[22]
[22] Anita Leocádia Prestes. Os militares e a Reação Republicana. Petrópolis. Vozes: 1993, p. 42.
Essas características ajudam a explicar a ojeriza que os militares nutriam pelo presidente Epitácio Pessoa. Como instituição tutelar da República e corporação autodeterminada, não admitiriam um civilismo tão radical, a ponto de terem que ceder “seus” ministérios a nomes civis. A sensação geral no seio das forças era de humilhação. No entanto, a estadia de Epitácio como chefe brasileiro na conferência de Versalhes deu-lhe a convicção segundo a qual os ministros das forças armadas não deveriam necessariamente ser militares. Este seria o primeiro passo, no entender do presidente, para a modernização de nossas forças de mar e terra. Mas o efeito prático das nomeações foi de quem tinha atirado pedra na caixa de maribondos.[23]
[23] Epitácio Pessoa deixou registrada sua convicção a esse respeito em seu livro de memórias, mais especificamente no capítulo Ministros civis nas pastas militares. Pela verdade, Ob. cit., pp 102–114.
A chegada de Hermes da Fonseca foi recebida como a volta do messias. As agitações que começaram a se fazer sentir nos quarteis, desde a campanha de sucessão de Rodrigues Alves, foram, em grande parte, canalizadas para aquele militar. Os cinco anos de estadia na Europa contribuíram para esfumaçar a péssima reputação com a qual saíra da presidência, em 1914. As homenagens prestadas ao ex-presidente dão a medida de como aquela figura era aguardada. Depois do banquete de recepção, outra grande manifestação para Hermes da Fonseca, com forte presença popular, ocorreu no dia 12 de maio de 1921, em ocasião de seu aniversário, comemorado no Teatro São Pedro e amplamente divulgado pelo Correio da Manhã.[24]
[24] Correio da manhã, 13 de maio de 1921, p. 3. [Link:
No dia 2 de junho, o marechal Hermes organizou um banquete em retribuição às manifestações recebidas. Esse encontro acirrou ainda mais as tensões entre os militares e o presidente da República, pois o banquete foi oferecido diretamente às classes armadas da nação. Aproximadamente 600 convidados — cerca de 300 militares de alta patente — estiveram presentes ao evento, organizado pelo comitê pró-Hermes (formado por generais, marechais, almirantes e políticos de oposição, como Mauricio de Lacerda).
O bródio aconteceu no imponente Palace Hotel e serviu também para o anúncio da candidatura do marechal para as eleições presidenciais. Muitos discursos inflamados foram dirigidos contra a classe política. O mais exaltado deles, proferido pelo capitão-de-fragata Alencastro Graça, resultou na prisão do militar, por ordem direta do presidente da República. A essa altura dos acontecimentos, o Correio da Manhã movia uma verdadeira campanha de artilharia contra Epitácio Pessoa, contra a candidatura Artur Bernardes e, de quebra, atuava como inflamador das forças armadas.
… o governo está a perseguir as classes armadas, no intuito preconcebido de as dominar pelo terror, pela ameaça e pelo fato da transferência dos oficiais que se pronunciam em favor de qualquer chefe atacado do Exército. Faltava um da Marinha. Aí está o comandante Alencastro Graça, que por ter sustentado, num banquete de militares, a doutrina essencialmente democrática de que as forças armadas não podem desinteressar-se de acompanhar a situação política, cabendo-lhes também o direito de crítica sobre os atos dos administradores, fora recolhido a uma prisão na ilha das Cobras. Ainda não há muito, o sr. Epitácio Pessoa, aconselhado pelo sr. Calógeras, deslocou do Exército para a condição de adido à nossa legação no Peru o capitão Klinger. Há pouco tempo, retirou desta guarnição os capitães e os tenentes Paulo Valle e Gustavo Cordeiro de Faria, porque eram amigos do general Barbedo e do marechal Bento Ribeiro. Desenhado o verdadeiro caráter de emboscada à nação contido na candidatura ignominiosa do sr. Artur Bernardes, o sr. Epitácio Pessoa perdeu as estribeiras, e ao que dizem os políticos associados a essa aventura, vai assumir de agora em diante atitude definida em relação às classes armadas.[25]
[25] Correio da manhã, 14 de junho de 1921, p. 2. [Link:
A candidatura Hermes da Fonseca ganhava cada vez mais solidez nos meios militares e no seio das populações urbanas, inclusive em certa parcela da classe operária, muito próxima ao deputado Mauricio de Lacerda, um entusiasta da candidatura militar. Políticos tradicionais das oligarquias intermediárias, no entanto, eram reticentes em relação ao nome do ex-presidente. Parte da imprensa, como O Imparcial, no Rio de Janeiro, e O Estado de São Paulo, apostavam em uma solução não militar para a crise sucessória.
A hora e a vez de Nilo Peçanha
E foi mais um desembarque vindo da Europa, no dia 06 de junho de 1921, que mudaria os rumos da situação: “naquele momento nebuloso, em que já se ia produzindo uma desagregação lenta e perigosa nas chamadas forças políticas que haviam deliberado adotar a candidatura Bernardes, que chegou ao Rio de Janeiro, de regresso de sua viagem à Europa, o chefe da política fluminense com as responsabilidades do poder em sua província. Desembarcou, e uma vez mais apreendeu, num rápido relancear de olhos, a delicadeza da situação.”[26]
[26] Sertório de Castro. A República de a revolução destruiu. Brasília. UNB: 1982, p. 268.
Nilo Peçanha, há mais de um ano longe do país, não deixou de ser o grande orquestrador da oligarquia fluminense e um dos mais influentes políticos daquela República. Sua experiência era vasta: foi um dos fundadores do Partido Republicano Fluminense (1888), participou com destaque da Assembleia Nacional Constituinte (1890), exerceu os cargos de deputado federal, senador, presidente do estado do Rio de Janeiro por duas vezes, vice-presidente da República — e presidente em 1909, em decorrência da morte do Afonso Pena. Mesmo estritamente ligado à política oligárquica que dominava a velha República, o sr. Nilo Peçanha sempre teve como projeto político, ainda que não enunciado explicitamente, a articulação de “setores oligárquicos dissidentes de diversos estados, visando a formar um eixo alternativo de poder à política dominante de São Paulo e Minas Gerais.”[27]
[27] Anita Leocádia Prestes. Op. cit., p. 29.
Evidente que o projeto de Nilo Peçanha não ia além dos compromissos firmados pelas oligarquias na manutenção daquele estado de coisas; a luta das oligarquias dissidentes acontecia no sentido de pleitear maior participação no banquete, mas em hipótese alguma acabar com ele. Todos os esforços foram feitos para que os líderes da dissidência apoiassem a candidatura de Artur Bernardes. Mas nem o marechal Hermes — que foi até Minas Gerais conferenciar com Bernardes –, nem Nilo Peçanha, que enxergava na situação sua grande chance de se tornar o presidente, demonstraram apoio a mais aquela trama urdida quase às escondidas.
De modo que, àquela altura, se desenharam no país três grandes forças políticas postulantes à sucessão de Epitácio Pessoa: o situacionismo, com a chapa Bernardes-Urbano dos Santos; a dissidência, dividida entre os nomes de Nilo Peçanha e Ruy Barbosa; e os militares, conflagrados em torno do marechal Hermes da Fonseca. As coisas começaram a ficar mais estabelecidas após a Convenção Nacional de 08 de junho de 1921, que ratificou a chapa situacionista — “a comédia da convenção Bernardes”, como diria o editorial do Correio da Manhã no dia seguinte.[28]
[28] O pacto criminoso. Correio da manhã, 09 de junho de 1921, p. 02. [Link:
O Imparcial, menos rude, deu enorme destaque para a participação do deputado oposicionista Maurício de Lacerda, transcrevendo trechos de suas falas inflamadas, entre as quais, um pedido de prorrogação da Convenção, que não foi aceito pela mesa diretora, além das constantes menções que o político fazia às forças armadas:
… as corporações armadas não podem deixar de sofrer o influxo da evolução das opiniões. Não lhes é dado deixar os quarteis impondo um candidato; têm, porém, o direito de sair dos quartéis confraternizando com o povo, proclamando a vida do direito contra as usurpações do poder. Nunca estenderia a mão ao militar que se quisesse mascarar na covardia de ser candidato através do Exército e não através das urnas, mas sempre a estenderia, como cidadão entusiástico, aos militares que, compreendendo que a República não pode nem deve continuar uma situação fechada à soberania do povo, com este comungasse para a liberação da Pátria.[29]
[29]O Imparcial, 09 de junho de 1921, p. 1. [Link:
Além da ratificação da chapa Artur Bernardes-Urbano dos Santos e dos discursos de Mauricio de Lacerda, a notícia que mais circulou na imprensa foi a ausência de Nilo Peçanha e a ordem partida do Rio Grande do Sul (entenda-se, de Borges de Medeiros) para que os representantes gaúchos não participassem do pleito. Poucos dias depois, a 24 de junho, acontecia, na sede da Sociedade Riograndense, no centro do Rio de Janeiro, a chamada convenção dissidente, com a apresentação da chapa Nilo Peçanha-J.J. Seabra para o pleito de primeiro de março do ano seguinte.
Contava a chapa oposicionista com a participação dos quatro estados dissidentes — Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. O manifesto lido na noite de lançamento foi amplamente veiculado pela imprensa de oposição à chapa situacionista, além de reportagens especiais sobre as figuras políticas que circundavam o programa da Reação Republicana. A empreitada dissidente ganhou manifestações importantes de setores da população urbana do Rio de Janeiro, inclusive de parte do operariado. E os meses seguintes “seriam marcados pelos encontros entre os elementos militares ligados à candidatura Hermes e as forças políticas, dentre as quais se destacavam as figuras de Ruy Barbosa, Nilo Peçanha, J. J. Seabra, possíveis candidatos à sucessão presidencial.[30]
[30] Anita Leocádia Prestes. Op. cit., p. 53.
Houve mesmo uma tentativa inusitada de aproximação entre Ruy Barbosa e Hermes da Fonseca, numa possível chapa Ruy-Hermes. Isso porque muitos militares não viam com bons olhos o nome de Nilo Peçanha, sempre mancomunado com a política dos governadores e o jogo das oligarquias. Mas as incompatibilidades eram enormes e as individualidades daqueles dois homens que haviam digladiado em 1909 não possibilitaram avanços em tal sentido. Neste ponto é preciso fazer justiça para a habilidade política de Nilo Peçanha, que conseguiu “inviabilizar a candidatura Hermes da Fonseca e atrair para a Reação Republicana o apoio da maioria dos militares”.[31]
[31]Idem, p. 55.
Uma das promessas de campanha de Nilo Peçanha era justamente a nomeação de militares para os ministérios da Marinha e do Exército. Restou ainda um núcleo duro do alto comando do Exército que pugnava pela candidatura Hermes da Fonseca, mesmo este se mantendo praticamente calado durante quase todo movimento de lançamento do seu nome junto à Reação Republicana.
Se o maior interessado não dava sinais de muito entusiasmo, o natural foi que as manifestações de apoio da alta oficialidade se voltassem cada vez mais para a candidatura de Nilo Peçanha. Em agosto de 1921 o nome do marechal Hermes da Fonseca quase não aparecia nos jornais e a campanha da Reação Republicana começou a ganhar as ruas. Com o apoio dos militares, os setores oligárquicos descontentes com o domínio das oligarquias mineira e paulista estavam prontos para a realização de uma grande campanha presidencial, “com uma presença popular jamais vista naquela República.”[32]
[32] Idem, p. 57.
Toda a imprensa oposicionista entrou de cabeça na campanha, tendo como carro chefe o Correio da Manhã, mas também O Imparcial e o recém-criado A Noite, do senhor Irineu Marinho. A imprensa de oposição dos estados seguia os periódicos da capital federal, numa trama muito bem urdida de troca de informações, reportagens, agitação popular e, principalmente, de ataque à candidatura de Artur Bernardes; “O diário de Edmundo Bittencourt [Correio da Manhã] transformar-se-ia no principal instrumento de aliciamento dos militares a favor da chapa oposicionista, denunciando as punições e transferências dos oficiais que haviam emprestado o seu apoio à Reação Republicana”.[33]
[33] Idem, p. 59.
Foi uma campanha à americana, como diziam alguns observadores da época. Em praticamente todos os estados foram criados comitês de campanha; a adesão da população urbana das grandes cidades crescia vertiginosamente; os militares transferidos por ordem de Epitácio Pessoa tomaram parte na organização dos comitês e atividades políticas e eleitorais pró Nilo-Seabra. Os comícios, eventos e publicações na imprensa tomaram cada vez mais um sentido cívico-militar; “o comitê eleitoral de Fortaleza congregava civis influentes e militares da guarnição local, realizando a propaganda da chapa oposicionista, o que permitiu promover grandes homenagens a Nilo Peçanha quando de sua passagem por essa capital nordestina.”[34]
[34] Idem, p. 61.
O périplo da Reação Republicana se estendeu por todo o país. A caravana e os comícios de Nilo Peçanha pelas capitais do Norte e Nordeste eram repercutidos na imprensa como grandes feitos épicos.
A bomba
Era o auge da campanha dissidente quando uma verdadeira bomba atômica do jornalismo saiu das oficinas do Correio da Manhã, no dia 09 de outubro de 1921. Já andava circulando nos bastidores políticos de Minas Gerais um certo diz-que-diz sobre a existência de algumas cartas de autoria dos senhores Artur Bernardes e Raul Soares, cartas de cunho ultrajante ao Exército brasileiro. No dia 20 de setembro de 1921, uma nota do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, dava publicidade aos boatos sobre as tais missivas: “Essas cartas, apregoadas pelo seu portador como autografas, e oferecidas à venda nesse caráter, ora aos amigos do sr. Bernardes, ora aos adversários da candidatura deste, puderam ser escritas em papel timbrado do gabinete do presidente de Minas e, consta, imitam muito bem a letra do mesmo.”[35]
[35] Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro. MAUAD: 1999, p. 357.
O caso acaba não ganhando grandes proporções na imprensa. Os jornais que traziam à baila tal conspiração eram bernardistas e agiam, naquele momento, de forma a prevenir a opinião pública, se alguma coisa viesse de fato aparecer. Mas naquele domingo, 09 de outubro, quando o Correio da Manhã publica, em sua tradicional página 2, sob o título “Ultraje ao Exército”, um artigo dos mais diabólicos escritos até então, as coisas mudaram de patamar.
Um acaso pôs-nos ao corrente dos fatos, que é, nem mais nem menos, a perda de cartas comprometedoras, escritas pelo sr. Artur Bernardes ao senador Raul Soares. Publicamos hoje uma delas, que nos veio ter às mãos, para a evidenciação do que é esse politiqueiro inferior, que a má sorte de Minas elevou à mais alta expressão do seu governo. Mais do que isso: esta carta, enviada por ele ao sr. Raul, é uma indignidade e uma afronta atirada ao Exército, representado nos seus oficiais, até os mais graduados, chamados de venais e capazes de serem comprados.[36]
[36] Ultraje ao Exército. Correio da manhã, 09 de outubro de 1921, p. 2. [Link:
Além do artigo, o jornal estampou um fac-símile da carta, “seguindo os mais apurados exames periciais”; manobra editorial que concorreu para dramatizar a notícia e criar um verdadeiro caos nos quartéis e intensificar ainda mais a campanha anti-bernardista da imprensa. O redator da notícia aproveitou as sucessivas idas do senador Raul Soares a Minas Gerais — ele que era o grande articulador da campanha situacionista — para enxertar pormenores abrasadores à matéria.
Não tardou que ficássemos cientes do verdadeiro motivo daquele alvoroço itinerante. O sr. Raul Soares havia perdido duas cartas da maior inconveniência e gravidade, que o seu candidato à presidência da República lhe havia escrito. Uma das referidas cartas, documento de um caso patológico, prova provada da cretinice, da falta de senso, e de cinismo, alguém conseguiu obter e acha-se agora em nossas mãos.
Eis o conteúdo da carta:
Belo Horizonte, 3–6–1921
Amigo Raul Soares
Saudações afetuosas.
Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados, e de tudo que nessa orgia se passou. Espero que use com toda energia, de acordo com as minhas últimas instruções, pois, essa canalha precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina. Veja se o Epitácio mostra agora a sua apregoada energia, punindo severamente esses ousados, prendendo os que saíram da disciplina e removendo para bem longe esses generais anarquizadores. Se o Epitácio com medo não atender, use de diplomacia que depois do meu reconhecimento ajustaremos contas. A situação não admite contemporizações, os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões.
Abraços do Artur Bernardes.[37]
[37] Idem.
Um detalhe importante — a data. A suposta carta havia sido escrita exatamente um dia após o grandioso banquete oferecido por Hermes da Fonseca às classes armadas do país, evento que resultou na prisão do capitão-de-fragata Alencastro Graça. No dia seguinte, todos os jornais do país repercutiam as “cartas ultrajantes” escritas por Artur Bernardes. Da imprensa, o burburinho passou para a agitação política, nas ruas e no Congresso, e principalmente entre as forças armadas. No dia seguinte, o Correio da Manhã voltava à carga, em editorial de meia página, clamando contra o perigo, caso “esse homem amoral, e agora provavelmente cretino, vier a obter a presidência da República”.[38]
[38] A carta. Correio da manhã, 10 de outubro de 1921, p. 2. [Link:
O marechal Hermes, que se encontrava em Petrópolis, assim que ficou sabendo da notícia, emitiu um telegrama convocando quantos oficiais fosse possível, para uma reunião extraordinária no Clube Militar, onde tratariam do assunto. Em maio daquele ano, Hermes da Fonseca havia sido eleito presidente daquela instituição, onde eram tramadas as ações políticas das forças armadas do país. Assim que chegou ao Clube, o marechal recebeu um telegrama do sr. Artur Bernardes, desmentindo a suposta autenticidade da “carta”. Ainda cauteloso quanto à veracidade daquele documento, Hermes declarou que se empenharia em “averiguar se tem fundamento ou não a revelação do Correio,
… procurando com todo o escrúpulo inquirir a verdade sobre esse grave incidente, que diz tão de perto com a honra das classes armadas, porque a questão não será só minha, mas do Exército e penso que esse saberá conduzir-se como lhe aconselhar a sua dignidade, repelindo com altivez as injurias contidas nesse documento. Não sei se as classes armadas se limitarão a um simples protesto.[39]
[39] O Imparcial, 11 de outubro de 1921, p. 1. [Link:
Os dias seguintes foram de amplos debates em torno da veracidade ou não das cartas. No Congresso, deputados bernardistas, nilistas e alguns que se diziam representar a honra dos militares faziam seus comícios empunhado o exemplar do fatídico jornal. A imprensa continuava acirrando os ânimos quando, no dia 13 de outubro, outra carta apareceu estampada no Correio da Manhã. Seria a segunda peça da maquinaria engendrada pelos políticos mineiros, agora com tratativas envolvendo a eleição de Raul Soares para a presidência da Minas Gerais, obra a ser orquestrada no ano seguinte ao da chegada de Bernardes à presidência. As duas cartas foram colocadas lado a lado na primeira página do jornal e circundadas por colunas e mais colunas de uma análise minuciosa da caligrafia e do estilo, sempre no sentido de apresentar aqueles dois documentos como provas inequívocas contra o candidato situacionista:
Ora, se a letra é igual, nitidamente igual, e é o bernardismo que o confessa, se a própria gramática, os destemperos do estilo mastigado, as incorreções e impropriedade dos termos combinam assim — não sabemos o que resta em favor da negativa do presidente de Minas.[40]
[40] Correio da manhã, 13 de outubro de 1921, p. 1. [Link:
Realmente, a letra era idêntica à de Artur Bernardes. No entanto, a primeira manifestação oficial do Clube Militar foi a de se declarar, a priori, pela falsidade das cartas, posicionamento endossado inclusive pelo marechal Hermes da Fonseca. Andavam circulando os nomes de dois possíveis falsários — Jacinto Guimarães e Oldemar Lacerda — que, junto com as veementes contestações de Artur Bernardes, fez com que o caso entrasse em litígio; havia começado “a luta que iria abalar o país.”[41]
[41] Nelson Werneck Sodré. Op. cit., p. 358
No meio desse alvoroço todo desembarcou no Rio de Janeiro o sr. Artur Bernardes, no dia 15 de outubro, para participar do tradicional banquete de apresentação da plataforma de governo. Por mais que os ânimos estivessem exaltados, ninguém poderia imaginar as proporções que o evento iria tomar. Uma multidão já estava plantada na avenida Rio Branco à espera da comitiva que, ao passar, recebeu uma estrondosa vaia. Por toda a extensão da avenida, o povo — civis e militares — entoava a marchinha “Ai, seu Mé”, dos autores Freire Júnior e Careca, que brincavam com os apelidos do político mineiro, ‘Rolinha’ e ‘seu’ Mé, transformando aquela tarde de sábado num misto de guerra civil e carnaval.[42]
[42] A letra pode ser acompanhada a partir do link:
A marchinha, gravada por Bahiano e o Corpo de Coros Canalha das Ruas, em 1922, pode ser ouvida através do link:
Houve um quebra-quebra geral, vários coretos que tinham sido erguidos ao longo da avenida foram destroçados e incendiados, retratos de Artur Bernardes arrancados das vitrines das lojas e queimados. Sertório de Castro, contemporâneo dos acontecimentos, assim resumiu aquele dia:
Imperava nas ruas cariocas o regime do terror; não ficou ao abandono arma alguma que pudesse produzir uma ferida no candidato ainda na véspera aceito por todos; sucediam-se os apelos à revolução, renovavam-se a cada momento da tribuna popular, nos comícios da praça pública e na imprensa, os incitamentos à subversão da ordem. O nome do presidente de Minas era coberto de convícios, não lhe respeitando nem os sentimentos mais rudimentares da dignidade humana, nem o recesso do próprio lar. […] Seguiam-se os atentados materiais, os conflitos sucessivos em que a força policial tinha de intervir com rigor, criando-se na capital, com uma irradiação por todo o território do país, um ambiente carregado de ameaça e apreensões.[42]
[42] Sertório de Castro. Op. cit., p. 270.
Estava coroada a obra do Correio da Manhã. No dia seguinte, o jornal dava uma capa inteira aos acontecimentos, com clichês do tipo “O Rio de Janeiro recebeu ontem, como ele merecia, o candidato da famigerada convenção do ‘mé’….”. Ou então: “Rolinha viu que a população carioca, representando a opinião pública nacional, não se submete à vontade dos politiqueiros”.[43]
[43] Correio da manhã, 16 de outubro de 1921. Link:
Era a consagração das “cartas”. O ponto máximo onde nenhum outro jornal havia chegado naquela República. A campanha difamatória contra o candidato de Minas, apelidado de “Rolinha”, ganhou um novo contorno depois das campanhas do Correio. Logo após a trágica passagem de Artur Bernardes pelo Rio, que só conseguiu ler sua plataforma de governo amparado por um forte esquema de segurança, desembarcaram na capital do país os políticos da Reação Republicana, consagrados pelas campanhas no Norte e Nordeste.
Verdadeiras ou falsas?
A sucessão de Epitácio Pessoa, a essa altura, já havia se transformado na mais grave crise política da República. No entanto, não era a primeira vez que surgiam alguns entraves, alguma voz de oposição, normalmente representada por Ruy Barbosa e sem maiores consequências para o andamento das coisas. O surgimento da Reação Republicana, com a divisão radical da alta cúpula governativa, complicava as ambições situacionistas, sobretudo com o envolvimento maciço da população urbana e o bloco muito poderoso formado pela imprensa de oposição. Ainda assim, a máquina eleitoral estava toda com o governo e o radicalismo dos militares parecia ter arrefecido com o afastamento de Hermes da Fonseca das disputas pela candidatura.
Mas, apareceram as cartas… que aproximaram aqueles dois rios oposicionistas que até então pareciam correr paralelos. Cada vez mais, nas manifestações de apoio a Nilo Peçanha, vai ficando caracterizada uma junção entre militares e civis. As tensões se voltam todas para a questão da autenticidade daqueles documentos estampados no Correio da Manhã. Das divisões internas do Clube Militar venceu a frente que apostava no tensionamento da questão. Formou-se uma comissão para um novo exame pericial nas cartas. Designou-se o general Gomes de Castro como presidente; o sr. Serpa Pinto, funcionário da Caixa Econômica Federal, figuraria como encarregado pericial pelo Clube; o chefe do Gabinete de Identificações do Governo, o sr. Simões Correia, foi o designado pelo presidente da República para participar da nova perícia, junto ao sr. Alexandre Barbosa Lima.
Na Câmara, o deputado Bueno Brandão, líder da bancada mineira, fazia a defesa de Artur Bernardes e atacava o Correio da Manhã; no Senado, fazia o mesmo o sr. Paulo de Frontin. O deputado Otávio Rocha toma as dores do Exército e insiste na questão da “ofensa à honra e aos brios militares”. O clima é de tensão e expectativa pela conclusão dos trabalhos da comissão; “O Exército e o povo se dividiam em duas facções irredutíveis, que admitiam ou negavam a falsidade.”[44]
[44] Hélio Silva. 1922: Sangue na areia de Copacabana. Porto Alegre. L&PM: 2004, p. 49.
O dono do Correio da Manhã, o todo poderoso Edmundo Bitencourt, segundo aqueles que privavam se sua amizade, “estava sinceramente convencido da autenticidade das cartas, e lançou-se na campanha com toda a violência de seu temperamento e a virulência de sua linguagem”.[45] Havia também, por parte do daquele jornal, uma comissão paralela, atuando junto aos peritos contratados pelo Clube Militar e representada pelo general Villeroy.
[45] Idem, p. 57.
No dia 19 de dezembro de 1921, o general Gomes de Castro pede demissão da presidência da comissão, alegando excesso de intromissão e muita pressão por parte do Clube Militar no sentido de que seja declarada a autenticidade das cartas. Na sequência do general, praticamente toda a equipe do governo, inclusive o perito, declina da comissão. O laudo apresentado pelos representantes de Artur Bernardes não deixava dúvidas sobre a falsidade daqueles documentos.[46]
[46] Idem, p. 53–4.
Mesmo assim, contrariando todas as evidências que apontavam pela falsidade das cartas, no dia 28 de dezembro, o Clube Militar se reunia em assembleia extraordinária, presidida pelo marechal Hermes da Fonseca, e com o comparecimento de quase 700 sócios. O almirante Américo Silvado, saudado com estrondosas palmas, discursou na tribuna e “relembrou” a todos os presentes o caráter histórico e decisivo da participação das Forças Armadas, desde a Proclamação da República e sua Consolidação, bem como do eterno estado de prontidão das forças de mar e terra para correr em auxílio da nação.
Coube ao coronel Frutuoso Mendes realizar a leitura daquele extenso relatório que colocaria, da parte das Forças Armadas, um ponto final na história das cartas. Como não podia deixar de ser, o Correio da Manhã estampou em capa inteira a “Moção Frutuoso Mendes”, com fotos dos militares que presidiram a comissão e artigos de fundo dando vivas ao Exército. Não apenas a capa, mas as quatro primeiras páginas, inteiras, foram devotadas ao caso, inclusive com a integra do laudo.[47]
[47] Correio da manhã, 29 de dezembro de 1921. [Link:
Eis o trecho da “Moção Frutuoso Mendes”:
O Clube Militar, reunido em assembleia geral para conhecer o resultado do exame pericial de que foi encarregada a comissão aclamada em sessão de 12 de novembro findo, considerando que ficou apurada a autenticidade da carta contendo expressão ofensiva ao Exército e Armada, dada à publicidade nesta capital a 9 de outubro último, e porque não tenha esse clube qualidade jurídica para promover ação em desafronta das corporações ofendidas, resolve, por isso, entregar o caso ao julgamento da Nação.[48]
[48]Hélio Silva. Op. cit., p. 53.
A oposição militar, que havia passado por vários estágios desde a vacância da presidência, decorrente da morte de Rodrigues Alves, da escolha dos ministros civis por Epitácio, do impasse das remunerações, das prisões e remanejamentos sumários de mais de duas dezenas de oficiais, chegou ao limite com a questão das cartas ofensivas. Até esse momento, havia uma fração das forças armadas manifestando certo descontentamento com o status quo. Mas ainda era a tradicional insatisfação militar, “continuação de problemas militares anteriores, com menor intensidade”. Era a velha “corrente militar tradicional, aquela que objetiva conquistar posições nos quadros dirigentes, a que se manifestava ideologicamente, como no passado, isto é, através da crítica ao civil, considerando-o inepto e corrupto”[49].
[49] Edgard Carone. Op. cit., p. 252
A chegada de Hermes da Fonseca em meio à crise teve o efeito de catalisar todas as indisposições entre militares e civis. Ainda assim, muitos oficiais de alta patente, tanto do Exército, quanto da Armada, se mantiveram dentro dos quadros legais de atuação, em obediência ao chefe supremo das forças armadas — o presidente Epitácio Pessoa. Mesmo que cindidos ocasionalmente, a alta oficialidade ainda se caracterizava nos moldes dos movimentos do fim do Império e primeiros anos da República, ou seja, dentro da luta política das oligarquias, numa tentativa de conseguir boas posições.
A radicalização do início dos anos 1920, no entanto, ensejou novas correntes no interior das forças militares, sobretudo no Exército; “a da baixa oficialidade e de suboficiais, que nasce praticamente com a revolta dos sargentos e pretende mudanças mais radicais, como as do sistema político e de poder.”[50]
[50] Idem, p. 240
É essa corrente que vai se ligar à Reação Republicana após o episódio das cartas. A trama urdida nas redações do Correio da Manhã havia cumprido seu objetivo — “lançar definitivamente o grosso das Forças Armadas contra a candidatura oficial”.[51]
[51] Anita Leocádia Prestes, Op. cit., p. 63.
Com a saída definitiva do marechal Hermes da concorrência pela presidência, os militares endossaram seu apoio aos candidatos da Reação Republicana. O mesmo se deu com o grosso das populações urbanas, “profundamente comovidas pela agressão supostamente perpetrada contra as Forças Armadas, vistas como vítimas da truculência governamental, da ‘politicagem’ e do ‘bacharelismo’ instalados no poder pelos políticos corrompidos […] Para essas populações, os militares iriam aparecer, cada vez mais, como os ‘salvadores’ da República e dos ideias proclamados em 1889, abandonados e traídos pelos políticos.”[52]
[52] Idem.
Um fato que não deixou de ser notado por muitos historiadores e historiadoras do período foi o caráter cada vez mais radical, depois do episódio das cartas, assumido pelos setores da baixa oficialidade do Exército. Enquanto os jornais pregavam a união entre militares, povo e a Reação Republicana, o clima caminhava cada vez mais para uma “solução pelas armas”. A candidatura Nilo Peçanha-J.J. Seabra, embora de oposição e cada vez mais atrelada aos militares, ainda representava um capítulo dentro daquele velho quadro institucional, das eleições de cartas marcadas, dos arranjos ‘por cima’, quando a época havia mudado e a população estava nas ruas exigindo, mesmo sem o saber, o fim do pacto das oligarquias.
Esse sentimento confuso, escreve Anita Prestes, “havia unido tropa e povo num mesmo impulso de transformação por via da destruição. A solução revolucionária — apoiada nas baionetas e, portanto, na ruptura da ordem legal — tomava conta dos corações e mentes tanto dos militares como de muitos civis. Os anseios populares deslocavam-se da Reação Republicana para os quartéis”.[53]
[53] Idem, pp 66–7.
Quando o Clube Militar finalizou o inquérito das cartas, decidindo pela autenticidade das mesmas e entregando o caso para o julgamento da Nação, direcionou o desfecho da situação bem ao gosto da alta oficialidade de orbitava a insigne instituição: que tudo fosse resolvido dentro as engrenagens eleitorais vigentes até então. Apostaram todas as fichas na campanha da Reação Republicana. Mas o episódio das “cartas” abriu no seio das Forças Armadas um flanco de inconformismo com a politicagem reinante que não teria mais volta. Já se falava abertamente nos comícios tanto de Nilo Peçanha, quanto de Seabra, que “ou a Reação Republicana saía vitoriosa, ou a República desapareceria, cabendo ao Exército impedir a subida de Bernardes ao Catete”.[54]
[54] Idem, p. 72
Bernardes eleito, a trama desfeita… só que tarde
Em janeiro de 1922, dois meses antes das eleições, foi enviada, a partir do Clube Militar, uma circular secreta a todas as guarnições do país com os seguintes dizeres:
Se Bernardes for eleito, nós impediremos aqui seu reconhecimento pelo Congresso; se for reconhecido, impediremos sua posse de qualquer modo! Em 15 de novembro não há governo, tomaremos conta de Bernardes — vivo ou morto. Então daremos a posse ao Nilo ou proclamaremos um ditador.[55]
[55] Moção confidencial do Clube Militar, janeiro de 1922. Citado em Anita Leocádia Prestes, Op. cit., p. 73.
Na verdade, não havia essa coesão toda no interior das forças armadas, que possibilitasse um golpe, a derrubada do governo ou que impedisse o candidato eleito de assumir o cargo. A maior parte da alta oficialidade, se estava ofendida em seus brios pelas injúrias contidas nas “cartas”, ou pela perseguição implacável de Epitácio Pessoa, não cederia à radicalização extremada do movimento.
O panfleto foi obra da baixa oficialidade, dos tenentes e capitães. Por mais que existissem alguns militares de alta patente dispostos à solução pelas armas, o grosso do generalato mantinha-se fiel ao quadro institucional. Prova disso foi o movimento que explodiu em 5 de julho de 1922 — o levante do Forte de Copacabana — que não durou 48 horas e acabou duramente reprimido pelas forças legalistas.[56]
[56] Hélio Silva descreveu, com minucia de detalhes, todo o movimento que culminou na marcha dos 18 do Forte de Copacabana no livro 1922: Sangue na areia de Copacabana. Porto Alegre. L&PM: 2004, pp. 79–166.
Como não podia deixar de ser, a chapa da situação saiu vencedora nas eleições: “Artur Bernardes obtém 1 575 735 votos e Nilo Peçanha 708 247. Mas os resultados oficiais não contentam a oposição, proclamando Nilo Peçanha o vício dos resultados e pedindo a verificação dos votos por um Tribunal de Honra.”[57]
[57] Edgard Carone. Op. cit., p. 357.
O não reconhecimento dos resultados por parte de Nilo Peçanha ganhou apoio do Clube Militar e do governo do Rio Grande do Sul, além de praticamente a totalidade dos que se empolgaram com a Reação Republicana. Essa manobra ateou mais gasolina na fogueira. A baixa oficialidade, que a história viria a consagrar sob o nome de “tenentes”, assumiu de vez a vanguarda conspiratória. Com a mobilização de uma tríplice bandeira — moralização dos costumes políticos, voto secreto e fim das fraudes eleitorais — os “tenentes” cada vez mais se preparavam para uma ação de força.
Levantes militares pululavam em vários estados; no Maranhão chegaram a depor o governador por 24 horas; o mesmo foi tentado no Paraná e em Santa Catarina. No Rio de Janeiro, o clima nos quartéis era de extrema apreensão — “o estado de espírito revolucionário crescia no país, contagiando não só as baixas patentes do Exército e da Marinha como as populações urbanas e parte de suas lideranças políticas. As informações existentes confirmam plenamente tanto o envolvimento de civis na conspiração militar quanto a intensificação do movimento conspiratório à medida que nenhuma solução política se mostrava capaz de impedir a posse de Bernardes na presidência da República”.[58]
[58] Anita Leocádia Prestes. Op. cit., p. 80.
Desde o dia seguinte à publicação das cartas pelo Correio da Manhã, a fração da imprensa que não se unira à Reação Republicana voltou a escrever sobre a existência de dois aventureiros e falsários, responsáveis por toda aquela trama.[59]
[59] Especialmente o jornal O Paiz, nas edições de 15, 16, 25 e 29 de novembro; 10, 15 e 16 de dezembro de 1921.
Tal notícia já havia sido ventilada pelo Jornal do Comércio, antes mesmo do fatídico dia 09 de outubro. No jornal O Combate, radicalmente bernardista, saíram inúmeras reportagens, artigos e entrevistas, principalmente com o deputado Fonseca Hermes — irmão do marechal Hermes da Fonseca — que disse ter sido procurado pelo falsário com as supostas cartas, que impediriam o sr. Artur Bernardes de chegar à presidência.[60]
[60] O Combate, dias 14, 15, 16 e 17 de novembro de 1921. [Link:
Um rapaz de nome Oldemar Lacerda era tido como o mentor da tramoia, tendo embarcado para a Europa no dia subsequente à notícia-bomba. O outro, Jacinto Guimarães, calígrafo, era apontado como o redator das cartas. Mas as coisas estavam dispostas de tal forma que aqueles que acreditavam na veracidade das cartas não arredariam mais o pé e, do outro lado, aqueles que sabiam da falsidade, morreriam pela candidatura Artur Bernardes. Ambas as frações eram diuturnamente abastecidas pela imprensa.
O país estava à beira de uma ruptura institucional quando, no dia 24 e maio de 1922, reuniu-se, na residência do sr. Cândido Guimarães, no bairro do Andaraí, uma comissão que pretendia colocar um fim àquela história sinistra. O doutor César de Magalhães, médico-cirurgião, eminente e bem relacionado com os próceres do Partido Republicano Mineiro, decidiu agir por conta própria; “empenhado por motivos de patriotismo e amizade a diversos políticos da situação mineira” e tratou “com afinco, dedicação e esforço, de descobrir a trama miserável das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes”[61]
[61] Carta do dr. Cesar de Magalhães ao jornal O Paiz, edição de 28 de junho de 1922. [Link:
Para realizar tal desígnio, o doutor Cesar de Magalhães conseguiu entrar em contato com Jacinto Guimarães, prometendo-lhe a quantia de cinquenta contos de réis (50:000 $) a fim de facilitar ao rapaz o embarque para fora do Brasil, “caso ele quisesse reduzir a escrito sua confissão e produzir perante testemunhos a prova material de sua autoria na falsificação das aludidas cartas.”[62]
[62] Idem.
Jacinto, que encontrava-se morando em Niterói, aceitou a oferta do médico, que adiantou oito contos de réis para lhe custear a estadia na cidade do Rio de Janeiro. O intuído de Cesar de Guimarães, segundo ele mesmo conta, não era o de publicar os documentos obtidos naquele dia. Esse, aliás, tinha sido um dos termos do acordo entre ele e Jacinto. A ideia era produzir um documento que seria exclusivamente utilizado nas altas cúpulas políticas e militares, com vistas a evitar uma grande tragédia nacional. No entanto, os rumores da existência da suposta confissão dos falsários e outra manobra arquitetada pelos jornais da dissidência fizeram com que os documentos fossem tornados públicos, pelas páginas do jornal O Paiz.
De posse do doutor Cesar de Magalhães, a ata daquela reunião foi escrita pelo sr. Caio Monteiro de Barros, tendo como testemunhas o advogado dr. Paulo de Lacerda e o tabelião Eduardo Carneiro de Mendonça e autenticada no 10º cartório da cidade do Rio de Janeiro, cujo tabelião responsável, o sr. Roquete, enviou notas à imprensa confirmando os trâmites daquele encontro. De acordo com as declarações de Jacinto Guimarães, o motivo alegado para participar da armação foi o bom e velho sentimento de vingança. Em janeiro de 1919 ele havia sido detido na cidade do Rio de Janeiro, por uma diligência da polícia de Minas Gerais, a pedido das autoridades policiais de Belo Horizonte — o delegado dr. Braga e o delegado-militar capitão Mello Franco.
Durante dois meses, na cidade mineira de Palmira, Jacinto Guimarães ficou trancado “em uma prisão infecta, de onde sofreu toda sorte de ameaças e torturas, inclusive fome e sede. Foi ali injuriado, insultado e, em certa noite, se não tivera oposto séria resistência e energia conduzi-lo-iam para o mato a fim de ser seviciado até confessar crime que não praticara”. Sua prisão havia sido motivada por uma falsa acusação por parte de um criminoso contumaz que atendia pelo vulgo de Borseti. Por intermédio de um habeas corpus, Jacinto Guimarães foi posto em liberdade, ficando à disposição da justiça até o fim das investigações, que lhe foram favoráveis após o julgamento ocorrido em setembro daquele ano.
Como sua prisão fora produto de intriga do referido criminoso Borseti e de cumplicidade e perversidade da polícia mineira, e o declarante e sua família sofressem fome, humilhações, ameaças e prejuízos, quer de ordem moral, quer material, alimentou o mesmo o natural espírito de vingança contra o próprio chefe o governo de Minas Gerais, o Exmo. Sr. Dr. Artur Bernardes. De uma feita, em palestra como sr. Oldemar Lacerda, com quem entretinha relações comerciais, manifestara desejos de vingança contra o Exmo. Sr. Dr. Artur Bernardes. Dias depois dessa palestra foi procurado pelo mesmo Sr. Oldemar Lacerda, que sabia ser o declarante grafólogo, para lhe propor ensejo de realizar sua desejada vingança, que, no dizer do Sr. Oldemar Lacerda, também lhe aproveitaria para fins políticos. E assim nasceu a ideia, que foi posta em execução, de serem por ele declarante escritas as cartas atribuídas ao Exmo. Sr. Dr. Artur Bernardes, datadas de três e seis de junho de mil novecentos de vinte e um e publicadas pelo “O Correio da Manhã”.[63]
[63] A confissão de Jacinto Guimarães. O Paiz, 28 de junho de 1922, p. 1. [Link:
Uma vez conseguida a confissão de Jacinto Guimarães, era hora de fazer o mesmo em relação a Oldemar Lacerda. O doutor Cesar de Magalhães realizou as mesmas diligências que já haviam sido exitosas. E no dia 31 de maio de 1922 era lavrada a confissão do arquiteto intelectual das “cartas falsas”.
Deliberei hoje esclarecer o caso das cartas atribuídas ao Dr. Artur Bernardes. Obedeço, neste momento, ao movimento de minha consciência de homem e aos meus sentimentos de brasileiro, pois antevejo as grandes desgraças que ameaçam a República. Minha pátria está quase convulsionada. As classes armadas, divididas, estão quase em luta. Estamos na iminência de graves acontecimentos que só prejudicarão o nosso país, perturbando a sua vida interna e desmoralizando-a no estrangeiro. Diante dessa situação aflitiva para a Pátria e a República criada pelo caso das cartas, foi que deliberei falar toda a verdade sobre ele, como faço nesse momento, comprovando também que quando resolvi a confecção das aludidas cartas, só tive o intuito político, que era elevar à presidência da República o meu eminente amigo Marechal Hermes, destruindo a candidatura Arthur Bernardes com essas cartas, dando origem com a divulgação das mesmas há um forte movimento das classes armadas que seria orientado em favor da candidatura desse meu ilustre amigo.
Estávamos em franca agitação a respeito da sucessão presidencial. Eu trabalhava fervorosamente pela candidatura do meu ilustre amigo Marechal Hermes para levá-lo à presidência da República. Sabedor da existência de uma pessoa, hábil calígrafo, aproveitei-me da sua habilidade para a fabricação das cartas atribuídas ao doutor Arthur Bernardes e publicadas pelo correio da manhã, sem que, em verdade, essa pessoa tivesse em vista qualquer interesse material. Com o objetivo exclusivo de favorecer a candidatura do marechal é que foram feitas as cartas referidas. Mandei fazer estas cartas como muitas vezes se fabricam atas falsas eleitorais para fins políticos. Os amigos e parentes mais dedicados e próximos do marechal Hermes recusaram utilizar-se das cartas, exigindo, para isso, que se desse a origem das mesmas, o que agora vou fazer.
Os elementos utilizados para serem feitas as cartas pelo calígrafo aqui já me reportei foram uma procuração do próprio punho do doutor Arthur Bernardes, no Tesouro Nacional, e mais um autógrafo que me foi confiado por um amigo, cujo nome não revela para não trair sua confiança. Foram esses dois, unicamente, os elementos gráficos do punho do doutor Arthur Bernardes que serviram para a fatura das cartas. A redação foi feita pelo calígrafo. O papel timbrado da carta publicada pelo correio da manhã em 9 de outubro de 1921, foi obtido na imprensa oficial de Minas Gerais, em Belo Horizonte, quando eu visitei essas oficinas, em companhia de dois amigos, sendo que esse papel foi trazido para o Rio de Janeiro por Pedro Burlamaqui, conforme as próprias declarações desse senhor que já vieram a público. Minha estada em Belo Horizonte foi em agosto de 1921.
Feitas as cartas e recusadas as mesmas pelos amigos e parentes do marechal Hermes, porque eu não dei a sua origem, tive conversações sobre a existência dessas cartas com o deputado Raul Sá, que, na própria Câmara, me apresentou ao deputado Raul de Faria, dizendo-lhes eu que as cartas se encontravam em poder de terceira pessoa. Procurei o deputado Raul de Faria, em seu escritório, a rua do Ouvidor, n. 90, referindo-lhe ainda esse fato e dizendo estar pronto a facilitar-lhe à vista dessas cartas, sem que eu tivesse pedido ou reclamado qualquer quantia ou proposto qualquer negócio ao deputado Raul de Faria.
Estive, posteriormente, com o meu amigo senador Irineu Machado, que, então, era exaltado hermista. Nosso encontro realizou-se no Senado, na sala da Comissão de Finanças. Disse ao senador Irineu que existia umas cartas, às quais, bem utilizadas, poderiam fazer ruir a candidatura Bernardes. O senador Irineu Machado desde logo interessou-se vivamente pelas cartas. Eu e o senador Irineu tivemos, dois dias depois, novo encontro no mesmo local. Mostrei então as cartas ao senador Irineu que, depois de lê-las e examiná-las, declarou serem elementos muito bons para destruir a candidatura Arthur Bernardes. Para mais confiança nas cartas, pediu que elas fossem examinadas por um perito, que daria seu parecer sobre as mesmas. Escolhemos o doutor Serpa Pinto, e, ato contínuo, entreguei ao meu amigo doutor Irineu as duas cartas atribuídas ao doutor Arthur Bernardes. De fato, o doutor Serpa Pinto examinou as cartas e declarou que eram boas. O senador Irineu restituiu-me as cartas e elas ficaram em meu poder até o dia 8 de outubro de 1921, véspera de meu embarque para a Europa. Nessa ocasião, o Jornal do Comércio publicou uma vária aludindo a existência dessas cartas e dizendo que se queria fazer uma chantagem com as mesmas. Deliberei, pois, entregar ao “Correio da Manhã”, por intermédio de meu amigo dr. Irineu, mostrando assim que o objetivo dessas cartas era exclusivamente político e eu não tenho nenhum intuito de chantagem.
No dia 8 de outubro de 1921, véspera de embarcar para a Europa, e que bem me recordo, no Senado, na sala da Comissão de Finanças, de acordo com o que combinei com o dr. Irineu e na sua presença, entreguei as duas cartas ao redator do “Correio da Manhã”, que ali se achava e que faz o serviço do Senado, cujo nome deve ser Mário Rodrigues. Nessa ocasião ficou combinado que o “Correio” só publicasse as cartas mais tarde e com minha autorização, sendo eu, entretanto, surpreendido com a sua publicação, logo no dia 9 de outubro. A primeira deslealdade! E em companhia do dr. Irineu, antes da minha partida para a Europa, estive em casa do doutor Nilo Peçanha e conversamos sobre as cartas atribuídas ao doutor Arthur Bernardes. Esse fato se deu antes de serem as mesmas entregues para a publicidade. No dia 9 de outubro de 1921, pelo “Massilia”, segui para a Europa, indo para Paris, donde voltei vinte dias depois, em dias de novembro do mesmo ano. Vim para me defender de fortes acusações, o que fiz com toda energia, por que até hoje não pratiquei ato indigno. O fato de mandar fazer cartas para fins políticos (na guerra como na guerra) não é fazer chantagem e sim procurar um meio com que pudesse outro ser o presidente da República e não o dr. Arthur Bernardes. Não tive intenção de ludibriar as classes armadas e sim procurar a sua intervenção no caso da sucessão, para que pudesse ser vitorioso o meu candidato.
Quando o senador Ruy Barbosa deu seu parecer sobre o caso das cartas, dizendo ser necessário declarar se a origem das mesmas, o senhor Raimundo da Silva, diretor do “Correio da Manhã”, falando em nome do doutor Edmundo Bittencourt, pediu que fizesse uma declaração dando uma ‘saída’ para a procedência das cartas e eu satisfiz essa solicitação, fazendo as declarações que o senhor Raimundo Silva me pedia e nas quais eu disse que as cartas do dr. Arthur Bernardes haviam sido encontradas na residência do dr. senador Raul Soares por um indivíduo que me dizia frequentar a residência do mesmo senador; sendo esse indivíduo uma entidade criada para explicar a origem das cartas. Essas declarações estão ainda em poder do doutor Edmundo Bittencourt, que ia dar publicidade às mesmas, tanto que eu tive em mãos as respectivas provas tipográficas. Entretanto, até hoje, não foram publicadas. Os artigos, cartas e publicações que fiz no “Correio da Manhã” e “Imparcial” foram por exigência do momento, a fim de dar visos de verdade as cartas aludidas.
Retirei-me no dia 27 de maio expirante da cidade de Niterói porque minha situação no estado do Rio, de certo tempo para cá, perigava. Sentia-me ultimamente sem garantias. Recebi ameaças de morte. Minha pessoa vivia vigiada, a minha residência, na rua Paulo Alves, n. 44, andava sempre cercada de policiais e gente armada e, diante das ameaças recebidas, temi ser eliminado de um momento para outro pelos próprios indivíduos que deviam me garantir a vida, porque eu era senhor de todo o segredo das cartas em questão e só minha morte poderia garantir o segredo perpétua sobre esse caso. Os amigos do senador Nilo Peçanha nunca permitiram que eu saísse de casa se não devidamente vigiado, e muito menos, jamais concederam que eu viesse a esta cidade. Sob ameaças eu era proibido de vir aqui e isso porque eles temiam que eu esclarecesse, como acaba de fazer, o caso das cartas. Tendo sido procurado em minha residência em Niterói diversas vezes pelo doutor César de Magalhães, que me pôs ao par do que se tramava então contra mim e eu tendo verificado, infelizmente, aquela realidade, e triste com a ingratidão daqueles a quem prestei tão grandes serviços, resolvi aceitar os valiosos serviços daquele doutor César.
Através de grandes riscos de vida, e dificuldades, tomei, às 6:30 da tarde de sábado passado uma lancha em companhia do dr. César Magalhães e mais três amigos, vindo para esta cidade, onde estou por minha espontânea vontade. São esses os esclarecimentos que em minha consciência de liberei fazer, livre e espontaneamente, sem qualquer coação ou constrangimento físico ou moral e sem ter em vista nenhum interesse e apenas com o objetivo de esclarecer toda a verdade sobre o caso das cartas, fazendo as presentes declarações e presença das testemunhas abaixo.[64]
[64] A confissão de Oldemar Lacerda. O Jornal, 13 de junho de 1921, p. 6. [Link:
Por mais comoventes e verossímeis que as confissões pareciam ser, a imprensa niilista continuou batendo na tecla oposta e produzindo verdadeiras obras primas do jornalismo. Agindo sempre em parceria, o Correio da manhã e O Imparcial compuseram algumas edições impressionantes, apresentando os documentos conseguidos pelo doutor Cesar de Magalhães como se fossem mais uma das artimanha do bernardismo. Montou-se uma nova versão dos fatos, segundo a qual os falsários Oldemar Lacerda e Jacinto Guimarães haviam recebido enorme quantia em dinheiro da Reação Republicana, para assumirem a autoria das cartas.[65]
[65] Correio da manhã, 13 de junho de 1922. [Link:
Edições de capa inteira, tanto d’O Imparcial, quando do Correio da manhã traziam novas “confissões” assinadas por Jacinto, ‘mostrando’ todas as tratativas e manobras realizadas entre o calígrafo e representantes do bernardismo. Nas edições de 27 de junho de 1922, encontramos a reprodução de um recibo de depósito realizado na conta de Jacinto Guimarães do River Plate Bank.[66]
[66] O Imparcial, 27 de junho de 1922. [Link:
Correio da manhã, 27 de junho de 1922. [Link:
O dinheiro teria sido parte do pagamento pela confissão vendida ao doutor Cesar de Magalhães. Os artigos de fundo reelaboram a versão e transformam o episódio das cartas numa verdadeira ‘guerra de narrativas’, para usarmos um termo atual. Pesou em favor dos defensores de Artur Bernardes o passado dos senhores Oldemar Lacerda e Jacinto Guimarães, principalmente daquele, dono de uma extensa ficha criminal e réu em inquéritos movidos principalmente por estelionato e falsificação de documentos. Parte dos setores ligados ao nilismo percebeu que também estava sendo vítima dos falsários, mas o estrago já tinha sido feito.
No dia 07 de junho de 1922, o sr. Artur Bernardes havia sido reconhecido pelo Congresso Nacional como presidente eleito da República. O Tribunal de Honra conclamado pelos dissidentes, para resolver o impasse das eleições através de uma nova apuração das atas eleitorais, foi negado pelo Supremo Tribunal Federal. Tudo indicava não haver saídas “dentro da legalidade” para impedir a posse de Artur Bernardes.
Acompanhando atentamente o desenrolas das coisas é fácil de perceber que mesmo antes do período das “confissões”, a questão da autenticidade ou falsidade das cartas injuriosas ao Exército havia perdido a centralidade no debate. O que dava o tom nas ruas eram as agitações nos quartéis, a apreensão pública e o sentimento de que algo muito grave iria em breve acontecer.
Mais uma vez, uma questão regional se transformava no estopim para graves conflitos de envergadura nacional. Surgiu uma crise sucessória para o governo de Pernambuco, onde dois grupos disputaram a ‘presidência’ do estado. Um dos candidatos era o sr. José Henrique, rico usineiro, político do grupo que conservava o poder, do qual era chefe o senador Manuel Borba; o outro, o sr. Lima Castro, apoiado pelos elementos oposicionistas que se congregavam em torno do general Dantas Barreto e do sr. Estácio Coimbra. O grupo de Manuel Borba havia aderido à Reação Republicana e realizara uma campanha nos mesmos moldes que Nilo Peçanha. A oposição, naquele estado, estava representada por elementos ligados à campanha bernardista e com muitas ligações, inclusive familiares, com o presidente Epitácio Pessoa.
As campanhas eleitorais aconteceram em clima de guerra na capital pernambucana, sendo os partidários da situação e as forças estaduais duramente combatidos por tropas do Exército, comandadas pelo coronel Jaime Pessoa da Silva, parente de Epitácio. O grupo ligado à oligarquia do senador Manuel Borba, em apoio à candidatura de José Henrique, movimentou enorme força miliciana através de ‘coronéis’ do interior. Após as eleições, cada um dos lados se declara vencedor e os conflitos armados inevitavelmente tomaram as ruas de Recife, a 29 de maio de 1921.
O Exército era duramente acusado de atuar em favor dos oposicionistas, que saíram derrotados nas urnas. Era o mesmo quadro que se apresentava em relação às eleições federais, mas com os sinais trocados: “O sr. Epitácio Pessoa era veementemente acusado de estar intervindo no pleito com o intuito de favorecer a causa que consultava os interesses políticos daqueles membros de sua família, tendo-se tornado manifestas suas simpatias pelo candidato oposicionista”.[67]
[67] Sertório de Castro. Op. cit., p. 276.
Não demorou para as tensões políticas de Pernambuco tomarem conta da capital de República. Alguns oficiais do Exército, indignados com a postura das tropas federais em Pernambuco, telegrafam para o Clube Militar do Rio, denunciando a parcialidade das forças naquele estado, contrariamente ao que vinha declarando o presidente da República:
protestamos perante os nossos camaradas no sentido de evitar que continuemos na situação humilhante e incompatível com a nossa dignidade de soldado que nos criou o caso de Pernambuco. A população está indignada com os acontecimentos provocados pela acintosa provocação da força federal…[68]
[68] Edgard Carone. Op. cit., p. 362.
Assinaram o telegrama quatro tenentes de guarnições do Recife. Tropas federias e navios de guerra começaram a chegar àquele estado. E junto ao efetivo federal chegou o telegrama de Hermes da Fonseca, direcionado ao coronel Jaime Pessoa, comandante daquela Região Militar:
O Clube Militar está contristado pela situação angustiosa em que se encontra o estado de Pernambuco, narrada por fontes insuspeitas que dão ao nosso glorioso Exército a odiosa posição de algoz do povo pernambucano. Venho fraternalmente lembrar-vos que meditei se nos termos dos artigos 6º e 14º da Constituição, para insertardes o vosso nome e o da nobre classe a que pertencemos da maldição dos nossos patrícios. O apelo que ora dirijo ao ilustre consórcio é para satisfazer os instantes pedidos de camaradas nossos daí, no sentido de apoiá-lo nessa crítica emergência, em que se procura desviar a força armada do seu alto destino. Confiando no vosso patriotismo e zelo pela perpetuidade do amor do exército pelo povo de nossa Terra, vos falo neste grande momento. Não esqueçais que as situações políticas passam e o exército fica.
Saudações — Marechal Hermes da Fonseca.[69]
[69] Hélio Silva. Op. cit., p. 79.
No mesmo dia em que recebe o telegrama do marechal Hermes, o coronel Jaime Pessoa pede demissão do cargo. Depois das “cartas falsas”, o telegrama de Hermes da Fonseca transforma-se em novo estopim revolucionário. Considerado como ato de insubordinação, o marechal é repreendido e preso no dia 2 de julho e 1922; no dia 03, o Clube Militar é fechado, em princípio por seis meses, baseado na lei contra associações nocivas ou contrárias à sociedade. Em Pernambuco, as duas facções conseguem chegar a um acordo, as eleições são anuladas e o juiz Sérgio Loreto é escolhido pelas oligarquias como candidato único.
Em decorrência da prisão do marechal Hermes da Fonseca e do fechamento do Clube Militar, a conspiração sobe ao nível máximo. “O Clube Militar, que desde o laudo que considerou verdadeira a ‘carta famosa’ havia-se tornado no mais perigoso dos centros de agitação política, foco permanente de conspirações e de planos subversivos, preparava-se para aproveitar devidamente aquele episódio tão propício à concretização da ideia esparsa nos ares”.[70]
[70] Sertório de Castro. Op. cit., p. 278.
A 01:25 da madrugada, do dia 5 de julho de 1922, “a cidade despertou, assustada, aos tiros do Forte de Copacabana”[71]. A conspiração passou ao ato. Deflagrado o movimento revolucionário, que tinha por objetivo derrubar o presidente Epitácio Pessoa, não durou mais do que 40 horas. O levante na Vila Militar foi sufocado facilmente pelas forças legalistas. O mesmo se deu na Escola Militar do Realengo. Em Niterói, não chegou a se formar o levante.
[71] Hélio Silva. Op. cit., p. 91.
O movimento esperado para acontecer em todo o país não havia criado raízes. No Mato Grosso, sob a chefia do general Clodoaldo da Fonseca, “os revoltosos dominam todas as unidades do estado e preparam uma marcha sobre São Paulo e posteriormente o Rio de Janeiro, mas à altura de Três Lagoas, o general Clodoaldo mantém conversações com um mediador enviado pelo governo federal, e conhecendo a derrota da revolta no Rio rendeu-se às forças legais”.[72]
[72] Maria Cecília Spina Forjaz. Tenentismo e Política. Rio de Janeiro. Paz e Terra: 1977, p. 48.
Os políticos de sempre, ou seja, boa parte dos congregados em torno da Reação Republicana, diante daquele ato de desespero dos militares revoltosos, rapidamente se posicionaram contra o levante. Nilo Peçanha, J. J. Seabra, Borges de Medeiros, que incentivaram ardorosamente a rebeldia militar com o intuito de “alcançar os objetivos políticos das dissidências agrupadas naquela coligação eleitoral, abandonaram seus antigos aliados. Nilo Peçanha, apostou sempre na solução legal, considerando a agitação militar apenas um meio de radicalizar o clima político, sem, contudo, pretender levar essa radicalização às últimas consequências, à rebelião armada, preparada pelos conspiradores.”[73] Mas como velha raposa da política, o senador fluminense não deixou de se solidarizar com os revoltosos, atuando inclusive na defesa jurídica de muitos militares indiciados nos processos movidos pelo governo.
[73] Anita Leocadia Prestes. Op. cit., p. 83.
Em 15 de novembro de 1922 tomava posse na presidência de República o sr. Artur Bernardes, com o país em estado de sítio, decretado por Epitácio Pessoa em decorrência dos acontecimentos de julho e estendido até o final daquele ano, para que nenhuma outra surpresa viesse atrapalhar a sucessão presidencial. Terminava a turbulência de mais uma sucessão, ao mesmo tempo em que começava uma nova fase política na curta história da Primeira República. Não deixa de ser irônico o fato de que o início do fim de nossa primeira experiência democrática tenha se dado em decorrência do que chamamos hoje em dia de uma fake news.
Isso não quer dizer que se Correio da Manhã não tivesse embarcado na trama dos falsários a República das oligarquias teria resistido e os militares, sobretudo os “tenentes”, não teriam tido o papel que tiveram no decorrer dos próximos anos. O esfacelamento daquele regime oligárquico se deu em razão de suas próprias estruturas. A forma política que havia estabilizado precariamente aquela época de profundas transformações entrou em franca contradição com seu conteúdo social e econômico. As crises sucessórias eram a expressão da própria crise daquele regime como um todo. A turbulenta sucessão de Epitácio Pessoa era mais um capítulo que denunciava a fraqueza do regime, cuja manifestação mais evidente era o funcionamento do processo eleitoral a da escolha dos representantes pelo voto popular.
O episódio das “cartas falsas” mostrou, melhor do que qualquer outro, a relevância do jornalismo nas lutas políticas e o caráter de prontidão em que sempre se encontram as Forças Armadas, para intervir na vida política do país.
O Correio da Manhã
É preciso assinalar, antes de finalizarmos esse relado, que nessa época o faturamento dos jornais se dava pela venda avulsa e a importância de um jornal era mensurada por sua tiragem. A publicidade ainda não havia entrado como fonte de receitas preponderante na manutenção dos periódicos. Estávamos nos primeiros anos do jornalismo empresarial, como ensina Nelson Werneck Sodré, e a necessidade da venda avulsa colocava os jornais e as revistas, “não só em estreita ligação com as tendências populares como na necessidade de cultivá-las, servindo-as fielmente”.[74]
[74] Nelson Werneck Sodré. O Tenentismo. Porto Alegre. Editora Mercado Aberto: 1985, p. 17.
O Correio da Manhã tornou-se o principal símbolo daquele novo tipo de jornalismo. Fundado em 1901, teve sua primeira edição apregoada pelos vendedores nas ruas do Rio de Janeiro no dia 15 de junho daquele ano: “vinha romper, efetivamente, o cantochão de louvores ao governo Campos Salles, que presidia a política de estagnação, onerando terrivelmente as classes populares. Quebrava a placidez aparente, alcançada pelo suborno, pela sistematizada corrupção, institucionalizada na compra da opinião da imprensa. […] Daí por diante, em toda a velha República, que ajudou a derrocar, o jornal de Edmundo Bittencourt foi, realmente, veículo de sentimentos e motivos da pequena burguesia urbana, em papel dos mais relevantes. Quebrou a monótona uniformidade política das combinações de cúpula, dos conchavos de gabinete; levantou sempre o protesto das camadas populares, na fase histórica em que a participação da classe trabalhadora era mínima. Através desse caminho, vindo de baixo, portanto, é que se transformou, e depressa, empresa jornalística”.[75]
[75] Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro. MAUAD: 1999, p. 288–9.
O Correio da Manhã ficaria imortalizado nas páginas de um jovem romancista, Afonso Henriques de Lima Barreto, que em 1909 publicou seu primeiro livro — Recordações do escrivão Isaías Caminha. Sob o nome de O Globo, o periódico de Edmundo Bittencourt (Ricardo Loberant) aparece em toda sua anatomia, num processo de dissecção moral que nos causa emoção até hoje. Em suas memórias, o personagem Isaías relembra a sensação que havia causado na opinião pública aquele acontecimento:
A conversa tinha cessado quando o diretor penetrou na sala. Era o Dr. Ricardo Loberan. Era um homem temido, temido pelos fortes, pela gente mais poderosa do Brasil, ministros, senadores, capitalistas; o jornal atraía, tinha um desempenho de linguagem, um grande atrevimento, uma crítica corajosa as coisas governamentais. Este gostou, aquele apreciou, e dentro de oito dias ele tinha criado, na multidão, focos de contágio para o prestígio de sua folha. E o jornal pegou. O Rio de Janeiro tinha então poucos jornais, quatro ou cinco, de modo que era fácil ao governo e aos poderosos comprar lhes opinião favorável. O aparecimento d’ “O Globo” levantou a crítica, ergueu-a aos graúdos, ao Presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos juízes, foi um sucesso…[76]
[76] Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Edição crítica organizada por Carmem Lúcia Negreiros e Ceila Maria Ferreira. São Paulo. Edusp: 2017, p. 220–221.
O Correio da Manhã inaugurou o caráter predominantemente de oposição que parte do jornalismo iria adotar nessa época; “e de sentido oposicionista tão acentuado que os governantes se sentiam na necessidade de manter, à custa dos cofres públicos evidentemente, uma imprensa a seu serviço[77].
[77] Nelson Werneck Sodré. O Tenentismo, p. 18.
Evidentemente que o jornal não era bem-quisto pela imprensa estabelecida. Seus métodos muitas vezes seriam contestados com estrema dureza, principalmente por utilizar de expedientes como o das “cartas falsas”. Comentando sobre a campanha a favor da Reação Republicana, um editorial do A. B. C. assim se expressou sobre a performance do jornal de Edmundo Bittencourt:
A atual campanha política não é uma finalidade para o Correio da Manhã; é somente uma feição transitória de sua combatividade permanente; é a sequência das lutas passadas e o prólogo de lutas futuras. Esse jornal vive exclusivamente da seiva oposicionista. E o único critério seu permanente, retilíneo, é o critério antigovernamental.[78]
A comédia da política. A. B. C., 12 de novembro de 1921. [Link:
A sucessão de Epitácio Pessoa colocou em outro patamar o papel das campanhas da imprensa. Alimentada pela tendência oposicionista da opinião pública, o bloco dos jornais que pelejaram a favor da Reação Republicana mobilizou um problema sistêmico e estrutural nos termos de uma luta entre a candidatura Arthur Bernardes — representando as mazelas do regime — e a candidatura Nilo Peçanha, elevado à categoria de renovador dos costumes políticos. Uma falsa oposição que seria captada pelas forças militares e não mais abandonada, até os derradeiros acontecimentos de outubro de 1930.
Escrevendo em 1985, o relato de Werneck Sodré impressiona, se fizermos, junto a ele, uma previsão do que se aproxima para a nossa próxima sucessão presidência, em 2022:
Realmente, jamais, em nossa história, uma campanha sucessória se desenvolveu com a violência que assumiu a de Epitácio Pessoa, antagonizando homens da mesma formação política, como Arthur Bernardes e Nilo Peçanha. Jamais um candidato sofreu, em nosso país, campanha como aquela que Arthur Bernardes enfrentou, enquanto candidato enquanto governante. Jamais a linguagem, nas lutas políticas, assumiu o tom que a referida campanha definiu. Ainda nesse particular, ficava esquecida a essência do problema, que era o regime, para marcar ferozmente a pessoa do candidato oficial. Nunca, ao longo de nossa vida republicana, uma personalidade pública enfrentou, como Arthur Bernardes, violência igual, violência verbal que se desmandaria, desde os apelidos grotescos infamantes até as falsidades mais graves. A questão essencial, desse modo, ficava obscurecida por essa massa de insultos vulgares, que visavam um indivíduo, pelo fato de ser o escolhido, dentro das normas que o regime impunha, para ocupar a presidência.[79]
[79] Nelson Werneck Sodré. O Tenentismo, p. 19.
Se a trama das “cartas falsas” pôde ser desfeita, seu efeito prático não foi. Os militares souberam capitalizar a comoção despertada pelas expressões ultrajantes dirigidas ao Exército: a elevação de Hermes da Fonseca à condição de novo Deodoro; a participação maciça na campanha da Reação Republicana e a formação do bloco revolucionário sob o comando dos “tenentes” foram movimentos impulsionados pela campanha orquestrada pelo Correio da Manhã.
Historiadores e historiadoras da Primeira República são unânimes em constatar que a partir das “cartas falsas” uma crise irrevogável se instaurou naquele regime: “Foram aquelas frágeis folhas de papel, diz Hélio Silva,
inflamáveis, fáceis de amarrotar e destruir, que desencadearam uma tempestade a que não pode resistir a República sonhada por Saldanha Marinho. […] A carta insultuosa aos militares foi a chama ao estopim… é a nova Questão Militar, que desenrolará seu processo recidivamente até a crise final em outubro de 1930.[80]
[80] Hélio Silva, Op. cit., pp. 36 e 41.
No início de outubro de 1937 — sempre em outubro! –, quase dezesseis anos após a publicação das “cartas falsas”, os principais jornais do Rio, entre eles o Correio da Manhã, noticiavam a descoberta de um plano secreto, com instruções do Komintern para uma ação revolucionária no Brasil.[81]
[81] Correio da Manhã, 01 de outubro de 1921, p. 3. [Link:
O tenebroso plano havia sido apreendido pelo Estado-Maior do Exército e colocou as Forças Armadas do país em prontidão máxima. Era o Plano Cohen. A “descoberta” do plano levou o presidente Getúlio Vargas a solicitar ao Congresso Nacional, já no dia seguinte, a instauração do “Estado de Guerra” contra o iminente ataque comunista. Estávamos às vésperas de mais uma sucessão presidencial. No dia 10 de novembro a ditadura do Estado Novo era implementada.
O tal plano, na verdade, foi uma farsa montada pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, então chefe da AIB (Ação Integralista Brasileira). Ele assumiu a tramoia somente em março de 1945. Dessa vez, as “cartas falsas” foram obra dos próprios militares. Mas essa é uma outra história.